Lúcia Helena

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Reportagem

Quem precisa de uma vacina contra a chikungunya?

Duas boas perguntas no momento atual: precisamos de uma vacina contra a chikungunya? E para quem ela seria? O pediatra e infectologista Marco Aurélio Sáfadi aceitou o desafio de respondê-las. Esse foi o tema de sua apresentação no Controvérsias em Imunizações deste ano, que aconteceu em São Paulo, na semana passada.

O evento tradicional da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações) merece a alcunha, porque reúne especialistas justamente para debater aquilo que ainda gera alguma dúvida ou divergência no mundo das vacinas, o que só reforça a confiança que devemos sentir quando uma delas é recomendada. Mas, no caso da chikungunya, qual seria a controvérsia?

Vacina a caminho existe

Conhecida como VLA1553, ela foi criada pelo laboratório austríaco Valneva, usando o vírus da chikungunya atenuado, ou enfraquecido, de uma cepa associada a quadros mais graves da infecção, que é a do centro-leste sul-africano.

Graças a um acordo de transferência de tecnologia, essa vacina está sendo estudada no Brasil , já em fase 3 — aquela etapa que antecede uma possível aprovação —, no Instituto Butantan, em São Paulo. Se tudo der certo, ele deverá produzi-la.

"Até o momento é o único imunizante contra essa doença", conta Sáfadi, que, além de professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, é membro do CTAI (Câmara Técnica de Assessoramento em Imunização) do Ministério da Saúde e integrante do comitê científico do CEPI, uma aliança global para o desenvolvimento de vacinas capazes de evitar novas epidemias e pandemias.

Com base em dados atestando que era segura e capaz de desencadear a produção de anticorpos em um nível necessário para defender da infecção, o FDA (Food and Drug Administration), nos Estados Unidos, decidiu licenciar a vacina desenvolvida pela empresa austríaca em novembro do ano passado. Isto é, ela pode ser aplicada em situações específicas, como a de viajantes adultos com passagem marcada para países onde o famigerado Aedes aegypti — o mesmo mosquito transmissor da dengue — anda voando e aprontando como nunca. Afinal, ele e outro mosquito, o Aedes albopictus, este mais encontrado em regiões de clima temperado, são os grandes vetores do vírus da chikungunya.

O Brasil, portanto, é um dos destinos que valeriam a picada, em dose única. Afinal, nosso país e o Paraguai concentram 99% dos casos na América Latina. Por aqui, só neste ano, somam-se perto de 183 mil suspeitas da doença , 102 mortes cuja causa foi comprovadamente a chikungunya e outras 106 que, de acordo com o Ministério da Saúde, ainda estão sob investigação. Aí é que está: a dengue pode estar levantando uma nuvem de fumaça, até por conta de alguns sintomas em comum, que não deixa a gente ver o vírus da chikungunya acionar uma dinamite.

Por que falamos que é uma doença explosiva

Não é por causa da febre que, na pessoa infectada, irrompe já nas alturas. Nem pela cabeça estourando de dor, ao lado de sintomas parecidos com os de outras arboviroses, as viroses transmitidas por mosquitos, como a conjutivite fazendo arder os olhos, a sensação de que um trator passou pelo corpo, as manchas vermelhas na pele. As razões para você imaginar uma explosão são diferentes.

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"Para início de conversa, as taxas de ataque são altíssimas", explica o professor Sáfadi. "Isso quer dizer o seguinte: em uma população suscetível, que não foi exposta ao vírus da chikungunya antes, acabamos tendo uma porcentagem muito, mas muito elevada de indivíduos infectados, beirando os 50% e fazendo surgir surtos que realmente podem ser descritos como explosivos."

Saiba: a chikungunya apareceu pela primeira vez no Brasil em 2013. Logo, por mais que os números recentes impressionem, uma enorme parcela da população brasileira ainda não teve a doença. Somos um pavio curto para o vírus. Basta o Aedes aegypti riscar o fósforo.

"E, ao contrário de outras arboviroses, como a dengue, em que a maior parte dos pacientes é assintomática, com a chikungunya a maioria desenvolve sintomas", avisa Sáfadi. Calcula-se que isso aconteça com sete em cada dez indivíduos infectados. Os tais sintomas duram uns dez dias, mas só se tiverem sorte.

O vírus vai, o sofrimento fica

O mais doído: o vírus da chikungunya, ao cair na corrente sanguínea, tem predileção por atacar nossas articulações. Punhos, joelhos, tornozelos, ombros, cotovelos — eles podem inflamar e inchar, geralmente dos dois lados, de maneira simétrica. Aliás, a palavra chikungunya, da língua falada pelos macondes no sudeste da Tanzânia, significa "corpo curvado". Talvez, curvado de dor.

Para 51% das pessoas, essa dor não passa tão cedo. Leva de cinco meses a cinco anos para sumir. É o que aponta uma revisão sistemática de estudos realizados em 76 localidades distribuídas por 38 países que enfrentaram surtos de chikungunya ou onde a doença é endêmica. Seus resultados foram divulgados hoje mesmo (quinta-feira, 23), no encontro da European Society for Paediatric Infectious Diseases, em Copenhagen, na Dinamarca.

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"Essa artrite crônica acontece particularmente com adultos. A tendência é melhorar com o tempo, mas o processo é muito lento", diz o professor Sáfadi, diretamente do evento europeu. "Portanto, é uma doença com um tremendo impacto na qualidade de vida e até na capacidade de trabalho."

Ameaça de lotar hospitais

O professor Sáfadi lembra, ainda, a lição cruel que aprendemos com o surto que ocorreu no ano passado no Paraguai: dos cerca de 100 mil casos registrados, 10% necessitaram de internação.

Os dados globais da revisão divulgada há pouco apontam uma taxa menor: 5% dos pacientes precisaram ficar no hospital. Ainda assim, é muita gente. Sem dúvida, uma explosão, capaz de deixar a estrutura de saúde de qualquer país em pé de guerra.

"A letalidade dessa doença é considerável", nota o professor Sáfadi. Em casos graves, o vírus invade o sistema nervoso central e desencadeia problemas circulatórios."No Paraguai, pelo menos 1% dos adultos morreu, com predominância de indivíduos acima de 60 anos e de crianças no primeiro ano de vida entre as vítimas", ele conta. Na tal revisão, a taxa de mortalidade foi dramática, de 0,2% a 9,5%, conforme a região.

De mãe para filho

Quando uma grávida contrai a chikungunya, surgem outros riscos. "No início da gestação, isso pode causar um aborto", explica o infectologista Renato Kfouri, vice-presidente da SBIm e um dos grandes responsáveis pelo Controvérsias em Imunizações. "Já no meio da gravidez, a doença aumenta a probabilidade de parto prematuro. E, se a infecção acontecer mais perto do momento do parto e o vírus estiver a circulação sanguínea, o perigo será ele passar para o bebê através da placenta."

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Essa ameaça, a da chikungunya perinatal, se concretiza em mais ou menos metade das vezes. "A criança, então, já nasce com a chikungunya, apresentando alguns dias depois erupções de pele bolhosas. Mas elas até são o de menos. O maior problema é que, no recém-nascido, o quadro pode se tornar bastante complicado, lembrando uma sepse. Um em cada 30 bebês acaba morrendo", completa o professor Marco Aurélio Sáfadi.

Ele também se preocupa com outro perigo, do qual pouco se fala e que valeria igualmente para a dengue: o de o vírus passar por meio do sangue de doadores infectados e assintomáticos. "Devemos discutir o rastreamento dessas arboviroses nas transfusões", opina.

Qual, então, a controvérsia?

Insisto nessa dúvida. "Para a primeira questão, se precisamos de uma vacina contra a chikungunya ou não, ela inexiste. Está claro que precisamos de um imunizante", assume Renato Kfouri. "Ora, quase ninguém teve essa doença no país. O potencial de ela se alastrar e sobrecarregar o sistema de saúde é enorme. A única controvérsia é quem seria o público-alvo inicial. Será que essa vacina deveria ser dada a todo mundo?"

Para Marco Aurélio Sáfadi, faltam elementos necessários na hora de fazer a indicação. "Não temos dados para saber se a VLA1553 será segura para crianças e adolescentes, porque os estudos com essa faixa etária ainda estão acontecendo", exemplifica.

Tampouco se tem notícia do perfil de segurança para pessoas com imunossupressão, algo delicado por se tratar de uma vacina feita com vírus atenuado. "Nem em gestantes", acrescenta o professor. "A vacina, até o momento, não foi estudada nesses grupos."

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Outra peça do quebra-cabeças: parece que, uma vez infectado, o indivíduo desenvolve imunidade para o resto da vida. Isso dá a esperança de que, com a vacina, aconteceria a mesma coisa. Mas é cedo para termos certeza.

A boa notícia é que os estudos em adultos mostram taxas de proteção nas alturas, que superam os 90%. Inclusive, em pessoas acima de 65 anos.

Mesmo assim, na opinião de Sáfadi , em um primeiro momento o imunizante só deveria ser aplicado em pessoas com mais de 18 anos, que vivam em locais onde comecem a surgir casos da doença, antes de a situação sair do controle. Se, na prova de fogo da vida real, a vacina repetir o sucesso que demonstrou nos ensaios clínicos, ela irá conter rapidamente surtos, desarmando a bomba que o vírus da chikungunya é capaz acionar contra a saúde pública. E esse desempenho — tomara! — ajudará a acabar com controvérsias.

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