Remadoras brasileiras que tiveram câncer de mama ganham o ouro em Barcelona
Durante três dias — entre 17 e 19 de maio —, as águas do Canal Olimpic, em Barcelona, foram agitadas pelos remos de 900 atletas, vindos de clubes de 15 países, formando equipes dispostas a dar tudo para que seus barcos dragões deslizassem à frente dos outros, tentando levar uma medalha na mala de volta para casa.
A quinta edição do Barcelona International Dragon Boat Fest teve, como as anteriores, várias modalidades — 200 metros, 500 metros, times masculinos, femininos, mistos, de faixas etárias diversas, incluindo sêniores, mas com destaque, aqui, para uma muito especial: a das atletas sobreviventes de câncer de mama.
Segundo a IBCPC (International Breast Cancer Paddle Commission), organização que visa expandir o dragon boat entre mulheres que tiveram esse tumor, já são mais de 310 equipes formadas por pacientes pelo mundo, espalhadas por 21 países. "No Brasil, até o momento, existem 21 registradas", me conta Márcia Netto Magalhães Alves, que é consultora de preparação física de uma delas, a da Associação Lua Rosa, em Fortaleza, no Ceará, a única a representar o nosso país no campeonato catalão.
Formada em Educação Física, mestre em Ciências do Exercício, doutora em fisiologia pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) — campus visto como quintal da sua infância, já que os pais eram professores de lá — e com pós-doutorado na Noruega, foi Márcia quem anunciou às nossas atletas o resultado da primeira de três baterias. Tinham ficado em primeiro lugar.
"A incredulidade delas era total. Durante a prova, só focavam em remar e não tinham noção de como estavam indo", relembra. Na segunda bateria, foi a mesma história. Na terceira, fim de papo: o ouro era do Brasil.
E olha que, no Ceará, as garotas estavam acostumadas a treinar em um dragon boat improvisado no melhor jeitinho brasileiro: duas canoas havaianas amarradas, com seis remadoras em cada uma delas (foto abaixo). No milenar barco dragão, surgido na China, cabem de 12 a 22 remadores dividindo o esforço — o que, aliás, facilita a prática para quem teve um tumor mamário.
Vitória contra estigmas
Esse pódio ajuda a superar preconceitos. Um deles é de que o câncer de alguma maneira nos vence — a dor dessa experiência, se resistia, se afogou, derrotada, nas águas daquele canal.
Outro é o da idade ou o da hora certa para iniciar um esporte: as medalhistas brasileiras têm de 40 a 60 anos. "Eu sempre fui esportista, mas algumas das minhas colegas de equipe só passaram a se exercitar rotineiramente quando começaram a treinar no barco, isto é, só depois do tratamento do câncer", me conta uma delas, a cearense Lucinha Simões, companheira de Márcia, admitindo que ninguém imaginava ostentar uma medalha nessa altura do campeonato.
Nos treinos, diga-se, todas elas remaram contra a maré de uma ideia ultrapassada, mas que continua bastante difundida: a de que todas as mulheres operadas de um câncer mamário devem evitar fazer força nos membros superiores. "Minha mãe, que também teve um tumor de mama há 18 anos, enfrentou outra realidade: era proibida de levantar um copo", recorda-se Lucinha.
Linfedema: um antigo receio
O medo de médicos e pacientes, então, era de que o esforço agravasse o linfedema, o inchaço extremamente doloroso nos braços após a retirada dos linfonodos na região das axilas, para onde alguma célula maligna poderia ter escapado. Esse inchaço aparece em cerca de 30% das pacientes.
"É claro que essas mulheres precisam tomar alguns cuidados em relação aos membros superiores na prática de uma atividade física", pondera a professora Patrícia Chakur Brum, da Escola de Educação Física da USP (Universidade de São Paulo), onde também é pesquisadora do Instituto de Biociências.
Foi ela, aliás, que ainda em 2015 mostrou à colega mineira Márcia Alves, consultora da equipe campeã, uma iniciativa na famosa raia da Cidade Universitária: o Remama, o programa de remo para reabilitar pacientes com câncer de mama que foi pioneiro no país. "Mas só passei a fazer parte dele em 2017, trazendo a pesquisa para esse grupo", esclarece.
O linfedema é resultado de um déficit da drenagem linfática, que pode ficar ainda mais evidente quando o fluxo de sangue aumenta para fornecer mais oxigênio e nutrientes aos músculos durante o exercício. "Daí que, se a mulher está com o braço muito inchado, ela de fato deve interromper atividade física", orienta a professora Patrícia, que é uma das responsáveis pelo guia da SBOC (Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica) para quem quer se exercitar depois do tratamento de um câncer.
No entanto, luvas compressivas na hora do exercício ajudam a prevenir o linfema. Por isso, são sempre recomendadas nesse contexto. "O interessante é que as remadoras comparam essas luvas antes e depois do treino: no final, elas ficam mais frouxas", comenta. Sinal de que a retenção de líquido diminuiu. Para Márcia Alves, faz sentido. "Quando a musculatura contrai e relaxa durante o movimento, ela auxilia o retorno de sangue ao coração e a própria drenagem linfática", diz.
E por que dragon boat?
Foi o médico canadense Donald McKenzie que, ainda em 1996, propôs que os movimentos do remo, pegando muito leve no começo, ajudariam até mesmo a prevenir o linfedema. "E, como todo exercício, diminuiria a inflamação", acrescenta a professora Márcia.
O cientista já gostava, ele próprio, de remar. E viu que o dragon boat seria a melhor embarcação para realizar seus estudos até porque — além da questão de dividir o esforço dos braços por muitas — exige um belo trabalho de cooperação entre as praticantes, o que reforçaria, mais do que a musculatura, a confiança e a autoestima.
Trabalho de fôlego
Márcia Alves se lembrou disso e do que tinha visto anos antes, na USP, quando Lucinha foi diagnosticada com câncer em 2021. Pesquisando, ela então descobriu que já existiam remadoras portadoras de câncer de mama na capital cearense, as da Lua Rosa.
Quando a companheira começou a treinar por lá — o que, atenção, só é permitido após a alta do tratamento oncológico —, viu que poderia contribuir com seu conhecimento. Começou ficando de olho nos batimentos cardíacos da turma durante os treinos. E, notando que algumas mulheres precisavam melhorar bastante o condicionamento, passou a propor desafios, como caminhadas que, no início, eram por trechos mais curtos, até cumprirem alguns belos quilômetros.
Não dá para saber se foi o fôlego conquistado desse jeito ou se foi a garra ou, ainda, se tudo junto e misturado, que garantiu a performance em Barcelona. Mas, se me permitem, não faltou à equipe da Lua Rosa peito ao insistir em participar, com a experiência de uma única prova internacional até então, em Brasília, quando as nossas atletas só perderam para a equipe dos Estados Unidos.
"Esse remo é da Amazônia?"
Com a ideia na cabeça, ninguém segurou essa mulherada — nem fora da água! Foram rifas e, claro, pedidos de apoio aqui e acolá. "Não temos patrocinadores", conta Lucinha Simões. "Mas até que, para esse campeonato, conseguimos algum apoio. Ganhamos os uniformes e, de outra marca, o colete salva-vidas, além de contribuições de pequenas empresas locais ", exemplifica. "Ah, ganharam filtro solar, óculos também", complementa Márcia.
Dá para imaginar: a maioria da equipe só conseguiu viajar com direito a bagagem de mão. O resultado é que o tal colete ficou no Brasil porque ultrapassaria os 10 quilos permitidos a bordo, embora tenha sido muitíssimo bem usado nos treinos,
Como não levaram praticamente nada, chegando a Barcelona as atletas do Ceará correram para comprar algo que fizesse as vezes da almofada. "Colocada no fundo do barco, ela ajuda a gente a não deslizar entre as remadas", explica Lucinha. Bem, isso foi improvisado quando encontraram uns descansos de mesa, tímidos perto dos almofadões sob medida para o formato dos outros barcos.
"Enquanto as equipes tinham remos de carbono de alta performance, tivemos de pedir o equipamento ao clube local", compara a professora Márcia. No dia da prova, vendo as brasileiras segurando os remos de madeira emprestados, as adversárias perguntaram: 'vocês os trouxeram da Amazônia?", com curiosidade aparentemente sincera.
O fato é que esses remos fizeram o dragão do barco voar e as nossas medalhistas, como já é tradição na modalidade, no final jogaram rosas na água, em memória daquelas mulheres com câncer de mama que, infelizmente, não estão mais aqui para celebrar as campeãs e o maior dos prêmios — que é a saúde, não é mesmo?
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