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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Será que o mundo já está pronto para enfrentar novas pandemias?

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Imagem: iStock

Colunista de VivaBem

23/05/2023 04h00

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Prepare-se. O que vivemos nos últimos três anos, quando o Sars-CoV2 deu a volta ao mundo, não foi a primeira e, se olhamos para a História, não é plausível pensar que será a última pandemia enfrentada pela humanidade. A pergunta que fica no ar é: quando será a próxima? Quem entende desse riscado acha que não irá demorar tanto.

Ainda no último domingo, 21, foi aberta no Palais des Nations, em Genebra, na Suíça, a 76ª Assembleia Mundial da Saúde. Até o próximo final de semana, representantes dos 194 países que hoje fazem parte da OMS (Organização Mundial de Saúde) devem redigir um tratado internacional de preparação para novas pandemias, cuja versão final será apresentada no encontro do ano que vem.

"Não podemos ficar sem fazer nada. Uma próxima pandemia logo baterá à porta", avisou Tedros Adhanom Ghebreyesus, o diretor-geral da OMS, na abertura do evento, justificando a urgência de os países organizarem a casa — para não dizer as políticas de saúde, os hospitais e tudo mais.

A pediatra e sanitarista Mariângela Simão conhece bem o ambiente dessa assembleia depois de ter passado 12 anos na OMS (Organização Mundial de Saúde), sendo a diretora-geral adjunta no período entre 2017 e 2022. Ou seja, a médica pegou o olho do furacão chamado covid-19, ainda mais por liderar a área de Acesso a Medicamentos e Produtos Farmacêuticos no deus nos acuda por vacinas.

De volta ao Brasil, a doutora Mariângela é a nova diretora-presidente do Instituto Todos pela Saúde (ITpS) e eu assisti à sua apresentação durante o International Symposium on Immunobiologicals, promovido por Bio-Manguinhos/Fiocruz na primeira semana deste mês. Ali, o tema também era este: estamos prontos?

Mais rápido do que gostaríamos

Desde sempre, de tempos em tempos o mundo se vê ameaçado por agentes causadores de doenças, os patógenos, capazes de se espalhar por seu território. "Nem todos provocaram o caos que vimos com a covid-19", pondera a médica. "Mas há pelo menos dois outros exemplos de pandemias que levaram a uma disrupção na sociedade", diz ela, referindo-se à gripe espanhola e à chegada do HIV, o vírus da Aids.

Só que, no passado, uma doença demorava muito mais para ir de um continente a outro. Então, era mais difícil para uma pandemia eclodir. "Agora, não. E deixo claro que não é uma opinião pessoal, mas o que aponta a ciência", diz ela.

Veja a dengue. O primeiro caso conhecido foi em Java, em 1779, e levou quase 150 anos para a doença sair da ilha na Indonésia e fazer vítimas pelas Américas. Já hoje o mosquito que serve de vetor para o vírus não precisa voar muito até encontrar um grande número de indivíduos para picar. E, se entre eles há alguém infectado, logo passa a dengue para a próxima pessoa de quem sugará o sangue.

Os especialistas estimam que, na pior das hipóteses, teremos apenas uns dois anos de sossego — e, nesse período de trégua, devemos nos organizar. "Um dos fatores por que as pandemias devem surgir em intervalos menores é que as pessoas circulam bem mais", observa a doutora Mariângela. De fato, em poucas horas é possível ir de um país para outro, talvez levando uma infecção na bagagem.

A gente também vive mais aglomerada nas cidades. As áreas urbanas, atualmente, já abrigam mais de metade, ou 55%, da população mundial e esse número deve saltar para 68% até 2050, de acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas). Ora, se tem uma coisa que aprendemos nestes tempos é que aglomerações facilitam as coisas — para um vírus respiratório, bem entendido.

Por fim, as cidades lotadas se esparramam. Crescem roubando o espaço dos animais que estavam em seu canto, na natureza. E eles carregam milhões de micro-organismos que ainda não conhecemos.

Talvez esses tipinhos não lhes façam mal. Mas o contato forçado com o bicho homem favorece uma transição — um vírus que parecia inofensivo passa a infectar o ser humano causando, então, uma zoonose. Foi assim com o HIV, com o ebola e — para citar um exemplo que deve se tornar mais falado nos próximos dias — com a gripe aviária.

De olho nos animais

Para a humanidade se preparar ou até mesmo prevenir uma nova pandemia, o ideal seria observar outras espécies. "Lá atrás, quando imaginaria que o estudo do padrão migratório das aves era importante para uma médica sanitarista como eu?", exemplifica a doutora.

E é. Pelas aves, em algum momento o influenza A H5N1, que começa a nos atormentar cada vez mais, aterrissou como o responsável pela gripe aviária, que tem maior potencial de causar pneumonias e morte.

Lembrando que a origem de pandemias frequentemente é uma zoonose, a OMS até criou uma estrutura, a One Health, para se debruçar sobre esse tripé: saúde humana, saúde animal e saúde ambiental, cujas interações ainda são pouquíssimo conhecidas.

"Quando você olha quanto se investe estudando a saúde humana e quanto se investe nas outras duas, fica claro que há um risco: sempre deixamos para correr atrás do entendimento de onde veio um vírus depois que ele chegou e já está causando doenças entre nós."

A melhor estratégia — ainda distante de realidade — seria dar um passo atrás e analisar os potenciais patógenos em espécies animais cujo comportamento está se alterando em função de agressões ao meio ambiente. Ou continuaremos à mercê de más surpresas.

De olho também em vírus diferentes

Aliás, não só em vírus, mas em qualquer micro-organismo causador de doenças. Você pode apostar que o tratado da pandemia deve ressaltar que todos os países precisariam se comprometer a realizar uma forte vigilância epidemiológica.

Isso significa, para explicar de um modo simples, pegar amostras de pessoas com uma infecção qualquer e sequenciar os genes do patógeno ali presente em seu organismo.

"Assim, é possível flagrar a entrada de um novo patógeno ou o ressurgimento de um deles que andava sumido e para o qual praticamente já não se produzem vacinas, como é o caso vírus da varíola", ensina a diretora-presidente do ITpS — instituto que, por sinal, atua nessa frente, fortalecendo redes de vigilância epidemiológica no país para revelar quais patógenos andam circulando entre nós, brasileiros. Segundo a doutora Mariângela, os vírus respiratórios merecem uma atenção ainda maior. "Pela facilidade com que se propagam", justifica.

Equidade no acesso a vacinas

Este é talvez o principal ponto. O tratado internacional de pandemias deverá recomendar que os cientistas tenham plataformas de imunizantes a postos para serem adaptadas ao patógeno da vez. Aliás, examinando a experiência recente, foi a nossa sorte: a ciência adaptou o que já vinha estudando e criou em menos de um ano vacinas contra o Sars-CoV2.

Mas, para frear uma pandemia e evitar muitas mortes, não adianta termos vacinas se elas não chegam no braço de todos — e atenção — praticamente ao mesmo tempo. Mariângela Simão gosta de repetir que, nas próximas, podemos cometer novos erros, mas não repetir os antigos. E vou lhe dizer: a falta de equidade na vacinação é um vacilo antiquíssimo.

Por exemplo, em 2009, quando a gripe H1N1 se alastrou, alguns países em desenvolvimento receberam o imunizante nove meses depois — quando a própria pandemia já tinha acabado, note o absurdo!

"E agora com a covid-19 não foi muito diferente", pensa a médica. "O consórcio Covax, por exemplo, comprou vacinas para distribuir a países mais vulneráveis. No entanto, alguns produtores entregaram o imunizante primeiro a quem tinha encomendado depois, mas pagando mais."

Além disso, feito aquelas pessoas que, desesperadas no anúncio da quarentena, encheram a despensa de leite condensado para fazer brigadeiro por um século, Estados Unidos e alguns governos europeus compraram um número mais alto de doses do que o de sua população. "Uma quantidade até nove vezes maior", afirma a doutora Mariângela. Naquele período, faltavam vacinas em boa parte do globo.

Para guardar

São comportamentos assim que o tratado tentará coibir. E ele também será fundamental para ninguém se esquecer dos últimos três anos. Em sua apresentação no simpósio de Bio-Manguinhos/Fiocruz, Mariângela Simão disse que um obstáculo sério é que tanto os responsáveis por políticas públicas quanto a própria população têm memória curta.

Igualmente importante é não banalizar a época atual, quando, só no mês passado, o mundo ainda viu mais de 3 milhões de casos de covid-19 pelos continentes e perto de 18 mil mortes. Estamos falando da próxima, mas esta aqui não acabou — apenas saiu do estado de emergência.

Pode não ser a lembrança mais agradável, eu sei. Mas parece óbvio: a gente só pode se preparar para aquilo que a cabeça recorda que pode, sim, acontecer de novo.