Elânia Francisca

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Opinião

Repertório emocional: o que é isso e o que brincar tem a ver com o assunto?

Você se lembra de já ter escutado (ou falado) a seguinte frase: "Não sei se vou colocar meu filho na 'escolinha', lá as crianças não fazem nada, só brincam o dia inteiro". Eu escuto muito isso, mas esse pensamento não está somente relacionado às crianças pequenas na escola.

Recordo que faz alguns anos, a mãe de uma criança que eu atendia decidiu que era melhor interromper o processo psicoterapêutico da filha comigo porque, segundo ela, "se for para ela vir aqui só para brincar, ela brinca em casa".

Nós, pessoas adultas, muitas vezes por falta de informação ou vivência de brincadeiras na própria infância, parecemos ter certa dificuldade para compreender o que significa o brincar para as crianças e acabamos desdenhando ou negando a importância dessa ferramenta de comunicação tão poderosa.

A brincadeira proporciona para as crianças um rico universo de possibilidades de vivências e aprendizados, sobretudo quando o assunto é criação e ampliação de repertorio emocional, que é um conjunto de conhecimentos sobre as próprias emoções.

Repertório emocional é algo que se constrói, aprende, lapida e se amplia pela vida toda. Quando o repertório emocional de alguém é escasso, ou seja, quando a pessoa tem dificuldade de identificar, nomear e comunicar o que está sentindo, torna-se angustiante lidar com suas emoções, porque é complexo lidar com algo que não conhecemos. Se eu não consigo perceber o que sinto, torna-se difícil pedir ajuda ou pensar em formas de passar por aquilo.

Isso me lembra um livro chamado "A Hora da Estrela", de Clarice Lispector.

No livro, há uma passagem que sempre recordo quando penso em repertório emocional. Trata-se da cena em que, ao perceber que a personagem Macabéa toma muitas aspirinas durante o dia, sua colega de trabalho lhe pergunta:

— Por que é que você me pede tanta aspirina? Não estou reclamando, embora isso custe dinheiro.

— É para eu não me doer.

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— Como é que é? Hein? Você se dói?

— Eu me doo o tempo todo.

— Aonde?

— Dentro, não sei explicar.

Macabéa não sabia nomear aquilo que sentia, mas sabia que desejava fazer parar. Tendo apenas o conhecimento de que aspirinas curavam dores, supôs que essa estratégia seria possível para lidar com aquilo que sentia, mas não sabia explicar —nem para as demais pessoas, nem para si.

Brincar transporta a pessoa que brinca para um lugar de imaginação, onde se vive a história pela via do faz de conta. É um lugar seguro para ser um astronauta (ou o próprio foguete).

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Brincar coletivamente é riquíssimo, porque ajuda a lidar com as emoções que surgem no convívio com outras pessoas.

Lidar com a frustração de ter que dividir o brinquedo que se queria para si ajuda a exercitar esse sentimento e aprender que é possível coletivizar algumas coisas. Ficar com raiva e aprender a dialogar sobre isso com as demais crianças ajuda a lidar com os momentos de raiva que se terá no futuro.

A brincadeira é a comunicação da criança, é ferramenta de diálogo sobre o que se sente e o que fará diante desse sentimento. Brincar é iniciar conversas, romper com os espaços de brincadeira é silenciar o que a criança sente e atrofiar sua capacidade de cuidar de si e das demais pessoas.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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