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Elânia Francisca

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Escurecendo as coisas: exercitar palavras traz perspectiva antirracista

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Colunista do UOL

20/05/2022 04h00

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Muitas pessoas dos movimentos negros costumam usar o termo escurecer as coisas como um exercício de ressignificação e contraponto ao uso da palavra esclarecer. O ato, aparentemente simples, de reorganizar o modo como as palavras são ditas, provoca a criação de uma nova lógica que passará a relacionar a negritude a significados de potência, contribuindo para rompimento da associação da escuridão —e, consequentemente, da pele escura— aos símbolos de negatividade ou ausência de humanidade.

Exercitar o uso de palavras como escurecer, num contexto positivo, contribui para que pessoas negras construam um referencial antirracista sobre sua estética e a de seu povo. Um exemplo desse exercício é um trecho da obra musical do cantor Rincon Sapiência, nomeada como Ponta de lança (2016). Nela, o artista versa: "A noite é preta e maravilhosa, Lupita Nyong'o".
Sapiência inverte a lógica que tenta esvaziar o escuro e a pele escura de qualquer possibilidade de beleza e cita a atriz e modelo Lupita Nyong'o como um exemplo de pele da cor da noite, sendo adjetivada como preta e maravilhosa.

E embora aqui eu esteja refletindo sobre questões raciais do povo negro, quero recordar a contribuição de Carlos Papá, em seu depoimento para o podcast Mekukradjá, idealizado por Daniel Munduruku e promovido pelo Itaú Cultural em 2017, no qual ele apresenta uma importante e delicada reflexão sobre a necessidade de nos atentarmos não só para o modo como se pronunciam as palavras, mas acima disso, para a compreensão de sua essência.

A palavra Guarani Arandu é trazida por Papá como exemplo, e ele informa que significa "a pessoa que tem a sensibilidade de sentir sua própria sombra". Nas palavras de Papá (2017): "Arandu é o que vem de dentro, é o que bate lá dentro, que vem trabalhando, distribuindo o sangue e também alimentando as coisas. A partir do momento que eu começo a fechar o olho e sentir eu mesmo, eu começo a trabalhar as coisas, inconscientemente, no meu corpo. O escuro é de grande importância para nós. Aran é sombra e Du é sentir (...) então Arandu é sentir a própria sombra".

Ainda que Papá estivesse falando sobre a importância de olhar para dentro e sentir a própria sombra e Rincon Sapiência falasse sobre o escuro, remetendo-se à pele negra, ambos veem potência na escuridão, seja ela a escuridão da pele ou a escuridão interna.

Se formos analisar a escuridão sob a ótica eurocêntrica, não avançaremos muito nesse exercício de dialogar na escuridão, pois esse pensamento hegemônico nos ensina que estar no escuro é estar perdido e perder-se é não saber onde se está. Já o pensamento ameríndio sobre o conceito de Arandu amplia a visão, para compreender que estar no escuro é uma oportunidade de olhar para dentro e saber exatamente onde se está.

Se fizermos o mesmo exercício, só que com base no pensamento afrodiaspórico, também aprenderemos a valorizar o escuro, tendo como desdobramento a valorização do resgate de nossa ancestralidade africana, porque agora teremos orgulho de afirmar que somos a própria escuridão.

Sendo assim, para se realizar diálogos no escuro, será preciso aprender a perceber o mundo sob a ótica dos pensamentos afrodiaspóricos e ameríndios.

*Esse texto foi construído a partir das reflexões que tenho feito durante minha pesquisa de doutorado.