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Elânia Francisca

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por mais difícil que seja o percurso, nós não podemos desistir das crianças

"O Menino Maluquinho", de Ziraldo - Divulgação
"O Menino Maluquinho", de Ziraldo Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

25/03/2022 04h00

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A nossa escrevivência não pode ser lida como história de ninar os da casa-grande, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos." Conceição Evaristo.

Fortalecida por Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo, quero explicar que contar minha história não é um ato de exposição gratuita, mas é parte de um processo de levantar questões sociais utilizando algumas vivências que são parte de experiências coletivas de crianças periféricas, sobretudo as negras.

Eu nasci nos anos 1980, seis anos antes do ECA (Estatuto de Crianças e Adolescentes) nascer. Isso quer dizer que nasci quando o Código de Menores ainda era tido como referência para pensar infâncias e adolescências pobres, em sua maioria, negras. Então eu nasci "menor" perante a lei brasileira.

Só em 1990, aos seis anos de idade, me tornei criança oficialmente, mas é importante dizer que sou filha de duas pessoas que nunca tiveram a infância e adolescência reconhecidas perante a lei. Meus pais, em suas vivências infantojuvenis, só foram vistos pela lei como "de menor", assim como meus avós e bisavós.

Ser filha de alguém que nunca teve reconhecimento e proteção legal em sua infância é viver literalmente na própria pele os desdobramentos de uma educação repressora vivenciada por seus pais.

Meu pai sempre me contou das vezes que ele apanhou da professora na escola por não saber a tabuada. Já minha mãe diz que foi expulsa da mesma escola que meu pai estudou porque a professora decidiu que ela nunca aprenderia nada.

Meus pais, por terem sido crianças entre os anos 1960 e 1970, cresceram numa lógica de menoridade e punição, por isso não tiveram acesso às informações e métodos saudáveis de como educar uma criança sem agredi-la, ou formas de tratar uma criança pela lógica da garantia de direitos, e não pela ideia de que a criança é um objeto de adultos.

Agressões físicas e expulsões não fortalecem a potência de uma criança, pelo contrário, essas são formas lúdicas de dizer àquela pessoa que o Estado desistiu dela.

O ECA é um documento importante para pensar a proteção de crianças e adolescentes, além de ser uma ferramenta para lembrar à sociedade e ao Estado que não podemos desistir das crianças (de nenhuma delas!) e que devemos pensar estratégias respeitosas de garantir que elas viverão uma infância tão potente e uma adolescência protegida e que se tornarão adultas saudáveis.

Ouço meus pais contando de seus primeiros anos escolares e lembro-me do primeiro livro que li na vida: "O Menino Maluquinho", que conta a história de vida de um garoto de classe média que aprontava todas na escola, no bairro e em casa. Usando os termos escritos por Ziraldo, o menino maluquinho tinha "pé de vento", "fogo no rabo", seu caderno tinha mais desenhos do que texto, enfim, ele era um menino muito maluquinho.

O caso é que esse menino foi protegido e respeitado em sua infância por todos os personagens adultos do livro que entendiam suas maluquices, bagunças e peripécias e nunca sequer cogitaram a possibilidade de desistir dele ou agredi-lo por não saber a tabuada. Ele foi respeitado ao invés de castigado, foi acolhido ao invés de ser expulso, e sabe o que aconteceu com ele? Cresceu e se tornou um cara legal.

Quando desistimos de alguma criança, em alguma medida estamos dizendo que ela deveria desistir de si também.