Topo

Elânia Francisca

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O dia em que Maria descobriu o prazer: relato de uma atividade com famílias

iStock
Imagem: iStock

Colunista do UOL

19/02/2021 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Maria* nasceu numa cidade pequena do interior de Minas Gerais. Desde os 9 anos de idade, trabalhava na casa de uma família influente em sua cidade. Quando completou 12, mudou-se para São Paulo, trazida pela filha do patrão que tinha acabado de receber uma proposta de emprego e precisava de alguém para cuidar da casa e lhe fazer companhia em sua nova jornada profissional. "Maria é obediente, de confiança, leva ela". O pai da jovem patroa ofereceu a menina como quem oferece um presente.

Com 12 anos de idade e tendo como referência apenas a filha do patrão (que agora era a patroa oficial), Maria chegou a São Paulo. Ainda era criança, então sonhava em comprar brinquedos e doces com parte do salário, já que a outra parte ela enviaria à família, que só permitiu sua viagem por causa de dificuldades financeiras.

Maria tinha medo, mas sempre achou que era bem tratada pela patroa que lhe dava bonecas de presente no Natal, e agora estava feliz por morarem juntas. Em São Paulo, maravilhou-se ao ver que teria um quarto só para ela, uma cama e um guarda-roupa. Tudo branco! Bem pertinho do banheiro e da cozinha, que a patroa apresentou como algo bom e que facilitaria sua vida.

Os primeiros anos foram intensos. A patroa saía cedo para trabalhar fora e Maria ficava em seu trabalho solitário dentro. Aos poucos, foi aprendendo a usar os eletrodomésticos, a sentir qual perfume de desinfetante era mais agradável e quais alimentos a patroa mais gostava. Atendia ao telefone, anotava os recados da forma que conseguia, já que a mudança de cidade e a rotina de trabalho exigiram a interrupção dos estudos.

Ela lavava, passava, cozinhava e gostava muito de ir ao mercado e à feira, que eram os momentos de conhecer um pouquinho a cidade. Aos 16, ganhou da patroa uma televisão para colocar em seu quarto. Daí pôde ver a novela e ampliar um pouquinho seu olhar sobre o mundo.

Imaginava-se passeando por São Paulo. Ela queria muito girar a roleta do ônibus com a cintura, sem usar as mãos. Queria, mas não dava tempo. Não cabia em sua rotina diária. Não tinha folga e, mesmo que tivesse, para onde iria?

A vida foi correndo seu curso, e Maria ia vendo a família da patroa tomar forma e crescer. Viu a moça se casar, aprendeu a conviver com o novo patrão. Depois acompanhou a primeira gravidez da patroa, viu o nascimento da primeira criança e depois da outra. Maria sabia data de nascimento, peso, altura, comida que as meninas gostavam, que desgostavam —ela tem tudo decorado até hoje.

Aos 25, conheceu um rapaz na feira. Ele era da banca das frutas. Vistoso! Toda quarta-feira Maria se aprontava para ver o feirante bonito de olhos pretinhos. Na quinta, ela lamentava o tempo que ainda faltava para voltar a ser dia de ir à feira novamente e ver o rapaz.

Um dia, ela parou na banca de frutas e o tal moço vistoso lhe perguntou se ela queria experimentar a mexerica. Maria não respondeu nem que sim, nem que não. Ela não sabia se podia aceitar, porque ninguém nunca lhe pediu que decidisse algo sobre si. Todas as decisões de sua vida foram tomadas pela família, pelo pai da patroa ou pela patroinha. Maravilhada com a descoberta do poder de decidir, ela só ficou ali quieta, olhando o moço se aproximar com a mexerica na mão e a estender em sua direção. Maria segurou rapidamente um gomo da fruta e jogou direto na boca, como quem arremessa uma pedrinha no poço.

O moço piscou para ela e gritou:

- Meeeeeeeexirica docinha, docinha, docinha!

Foi essa a história que Maria contou durante uma roda de sensibilização de famílias, na qual eu havia perguntado: "Quando foi a primeira vez que você sentiu prazer?".

Maria poderia ter escolhido qualquer história, mas escolheu essa, justamente essa história, porque, segundo ela, foi primeira vez que seu corpo se deparou com o prazer.

E Maria não estava falando de um prazer sexual com relação ao rapaz feirante**. Ela falava do prazer de perceber que é dona da própria vida, pois quando o rapaz a consultou sobre a mexerica, ela se deu conta de que poderia dizer "sim" para as coisas, mas que também poderia dizer "não" e estaria tudo bem, independentemente de qual decisão tomasse.

Com sua história, Maria mostrou que falar de prazer também é falar de autonomia e consentimento, e que desejo não se restringe à vontade de transar.

Todas as pessoas presentes eram responsáveis por adolescentes que, na semana seguinte, participariam de uma roda de conversa sobre prazer e consentimento. E quase todas as famílias estavam apreensivas e resistentes com o tema.

Maria não notou, mas sua história ampliou a escuta de todas as pessoas naquele dia para a importância de se falar sobre sexualidade com o público adolescente.

*O nome, o estado de nascimento e moradia de Maria foram trocados para proteger sua identidade.
**Maria nunca mais conversou com o tal feirante depois dessa situação. Informou que passava pela banca do rapaz de cabeça baixa, para evitar qualquer diálogo.