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Argentina: militantes pressionam senadores a aprovar legalização do aborto nos arredores do Congresso

28.dez.2020 - Argentina registra protestos enquanto Senado se prepara para votar projeto que pode legalizar aborto - Emiliano Lasalvia / AFP
28.dez.2020 - Argentina registra protestos enquanto Senado se prepara para votar projeto que pode legalizar aborto Imagem: Emiliano Lasalvia / AFP

Márcio Resende

Correspondente da RFI em Buenos Aires

29/12/2020 13h43

Militantes favoráveis e contrários ao aborto ocupam as ruas no entorno do Congresso. Do lado esquerdo do edifício, com lenços verdes, estão ativistas que defendem a legalização do aborto. Muitas pessoas passaram a noite em vigília para fazer pressão sobre os legisladores. É o caso de Juliana Cabrera, 33 anos, militante do Partido Obrero.

"O que vai acontecer no Senado depende, em grande medida, da nossa mobilização. Sabemos que os blocos políticos majoritários têm fortes alianças com as igrejas e o lobby clerical no Senado é forte. Os votos não estão garantidos", explica Juliana à RFI.

As "verdes" argumentam que se trata de uma questão de saúde pública, porque os abortos acontecem mesmo que sejam ilegais. A diferença é que, ao serem clandestinos, as mulheres correm mais risco de vida.

"Temos uma grave situação com os abortos clandestinos que se multiplicam e que levam a vida das mulheres. O aborto existe. O debate é se continuará clandestino e um negócio para uma minoria", questiona Juliana.

Outro argumento comum é a defesa do direito de decisão da mulher sobre o seu próprio corpo.

"Defendemos o direito à maternidade desejada e planejada. Não a tortura de forçar uma mulher a levar a gravidez até o final, quando não lhe garantem as condições para isso", alega.

As argentinas favoráveis à legalização do aborto que chegam às imediações do Parlamento estão representadas principalmente por integrantes do movimento feminista e por militantes de partidos de esquerda.

Ariadna Pardo Barríos, 18 anos, milita há um ano em La Cámpora, o mais expressivo grupo político de jovens liderados por Máximo Kirchner, filho da vice-presidente Cristina Kirchner.

"Esta é a oportunidade de saldar uma dívida da democracia. A cada ano, morrem mais mulheres que se submeterem ao aborto clandestino. Não estamos a favor do aborto. Por isso, o nosso lema é anticoncepcionais para não abortar. Mas os abortos vão continuar. A questão é se queremos que seja legal ou que seja clandestino, pondo em risco a vida da mãe", indica Ariadna à RFI.

Salvar as duas vidas

Do outro lado da praça do Congresso, equipada para a ocasião com divisórias - a fim de evitar distúrbios -, argentinos contrárias ao aborto usam como símbolo um lenço azul-celeste. Os opositores à legalização defendem que a vida começa com a concepção e, nesse caso, o aborto seria um crime contra um ser humano indefeso.

"Sou médico e sou católico. A vida existe desde a concepção. Havendo tanta gente que quer adotar, que precisa de crianças, é possível essa opção e não diretamente matar. A legalização não vai beneficiar a mãe. Do ponto de vista psicológico, quem passa por isso fica com graves sequelas. A pobre mulher que abortar, levará esse peso para o resto da vida", aponta à RFI o pediatra Cristian García Roig, 67 anos.

As mulheres contrárias à aprovação da medida afirmam que o aborto, mesmo legal, não impediria a morte da mãe nem as sequelas físicas e psicológicas. Na visão delas, existem duas vidas para defender: a da mãe e a do feto.

"O bebê será atingido quer seja na legalidade, quer seja na clandestinidade porque o aborto afeta o princípio da vida, razão pela qual estamos aqui", concorda a também médica María Cecilia Campos y Laurencena, 29 anos, especialista em diagnóstico por imagens.

"Eu faço estudos de fertilidade diariamente. Vejo as sequelas nos úteros das mães que passaram por abortos provocados ou espontâneos. Anos depois, tentam engravidar e não conseguem devido às sequelas. Não só psicológicas, mas também físicas", diz à RFI.

Entre as contrárias ao aborto estão pessoas religiosas, que consideram que o aborto seria um ato antiético, e militantes de partidos de centro-direita.

"Estou aqui para honrar a vida. O aborto não é a solução. Há outros caminhos, como a adoção acompanhada por instituições que dão apoio psicológico e espiritual. Essa mãe vai viver feliz porque não se submeteu à facilidade de eliminar um ser", defende Agustina Padilla Hidalgo, 68 anos.

"Querem legalizar a morte de um ser indefeso. Tenho fé em que alguns indecisos percebam o erro que podem cometer", espera Agustina.

O debate será transmitido ao vivo por vários telões nas imediações do Parlamento. Haverá manifestações tanto do lado de fora como nas principais praças de todo o país.

Maioria se opõe

Os analistas de opinião pública estimam que a maioria da sociedade é contra a legalização do aborto. Há dois anos, quando houve o primeiro debate no Congresso, havia maior paridade social, mas, no Senado, houve uma maioria contrária que rejeitou a legalização, depois de a Câmara de Deputados aprovar o projeto de lei. Agora é o contrário: existe uma maioria na sociedade contra, mas existe paridade no Senado. Por isso, o resultado é imprevisível.

Segundo a consultora Giacobbe e Associados, atualmente 60% dos argentinos são contra a legalização do aborto; apenas 26,7% querem a aprovação da medida.

"O clima político de agora não é o mesmo de 2018. O assunto caiu na polarização política que divide a Argentina, e as pessoas associam a lei a um projeto do atual governo", avalia o responsável pelo estudo, Jorge Giacobbe. Ele considera que outra explicação para a perda de apoio foi "a radicalização do discurso e das ações dos grupos feministas", que "assustaram uma parcela significativa da sociedade".

Outra consultoria respeitada no país, a Poliarquia, calcula que 48% dos argentinos se opõem, enquanto 41% são a favor da legalização do aborto.

"A incógnita política é como será a reação da Igreja e a relação do governo com o papa Francisco, um aliado importante que tem, ao lado dos movimentos sociais, atuado para conter a explosiva situação social deteriorada pela crise econômica", observa Alejandro Catterberg, diretor da Poliarquia.

A empresa de consultoria Opinaia, que costuma trabalhar para o governo, também detectou que 49% da população é contra a legalização do aborto. Os favoráveis somam 35%.

Cenário de empate

Se a votação terminar empatada, o voto de desempate virá da presidente do Senado. Na Argentina, quem preside o Senado é sempre o vice-presidente - neste caso, Cristina Kirchner. Ela terá de escolher entre ficar bem com a sua militância, já que 57% dos seus eleitores são a favor, ou ficar bem com o papa Francisco.

"Nesse caso, ela vai votar a favor da legalização do aborto. Ela sempre está com o povo e nos escuta", garante a militante governista Ariadna Pardo Barríos.

A definição virá de cinco senadores ainda indecisos sobre os quais acontece todo tipo de pressão e oferta de favores. O governo tem negociado concessões de obras para os senadores. As igrejas católica e evangélica têm agido nos bastidores.

Cortina de fumaça

A popularidade do presidente Alberto Fernández recuou para cerca de 30%, depois de ter alcançado 70% em abril.

Devido à quarentena de oito meses para conter a epidemia do coronavírus, a queda na economia argentina desgastou o governo. A redução do PIB argentino será proporcionalmente maior do que nos demais países da região. A Confederação Argentina da Média Empresa (Came) acaba de divulgar que fecharam 90.700 lojas desde o início da epidemia, número equivalente a 15,6% dos estabelecimentos comerciais do país. Cerca de 41.200 pequenas e médias empresas faliram.

Simultaneamente ao debate no Senado, a Câmara de Deputados pode aprovar um ajuste para baixo nas aposentadorias, que perderiam valor diante da inflação. É uma mini reforma previdenciária.

A legalização do aborto e o processo de vacinação contra a Covid-19 serviriam para desviar a atenção do ajuste nas aposentadorias e para mostrar um governo com duas vitórias num ano de derrotas, sobretudo na perspectiva das eleições legislativas previstas em 2021.