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França debate direito de mulher de engravidar utilizando gametas do marido falecido

Decidida a engravidar pela terceira vez, mulher trava um braço de ferro com a Justiça francesa - slavemotion/iStock
Decidida a engravidar pela terceira vez, mulher trava um braço de ferro com a Justiça francesa Imagem: slavemotion/iStock

Da RFI, na França

16/01/2020 14h06

A questão volta à tona na França com o combate de Laurenne Caballero, de 28 anos, impedida de realizar uma procriação medicamente assistida post-mortem. A francesa perdeu o marido no ano passado, mas os embriões fecundados antes do falecimento dele permaneceram armazenados em um hospital do país. Decidida a engravidar pela terceira vez, a mulher trava um braço de ferro com a Justiça francesa.

A Constituição francesa é clara: a inseminação post-mortem é proibida no país e o novo projeto de lei da bioética, atualmente em análise no Senado, não propõe mudar a situação. Após meses de debate, em setembro do ano passado, a Assembleia da França rejeitou a possibilidade de que mulheres realizem uma procriação medicamente assistida (PMA) utilizando os gametas de seus maridos falecidos para engravidar. O texto final deve ser aprovado até fevereiro.

A questão da inseminação post-mortem divide opiniões até mesmo dentro do governo. O Comitê Consultativo Nacional de Ética defende o método porque acredita que, antes do falecimento do pai, já existia um projeto parental. Já para a ministra da Saúde, Agnès Buzyn, é preciso considerar "a vulnerabilidade" da mulher de luto.

"Todos sabemos que o olhar dos outros muda, questiona-se o amor da pessoa por aquele que morreu. Como as mulheres poderão resistir à pressão social, dos amigos e da família que dirão: 'se você realmente o amava, deve ir adiante com esse projeto'?".

Entre os deputados, a realização de um procriação medicamente assistida post-mortem tem apoio da ala da esquerda e do partido centrista A República em Marcha, do presidente francês, Emmanuel Macron. É o caso de Jean-Louis Touraine, para quem é "paradoxal" autorizar o método somente a mulheres solteiras ou a casais de lésbicas. Ou seja, viúvas poderiam utilizar gametas de um doador anônimo, mas não do marido morto.

Entre os próprios centristas, a questão não é unanimidade. Para a deputada Aurore Bergé, é preciso considerar "o interesse superior da criança, que pode ter que lidar com uma história de vida particularmente pesada". Vários deputados da direita também se opõem à ideia e convidam os colegas a não brincarem de "aprendizes de feiticeiros".

"Sempre quisemos uma grande família"

O caso de Laurenne chama atenção em um momento em que o movimento conservador contesta até mesmo a possibilidade de que mulheres solteiras ou casais de lésbicas possam realizar a procriação médica assistida, como prevê o projeto de lei em análise no Senado. No próximo domingo (19), associações e militantes ultracatólicos sairão às ruas da França para pedir ao governo o cancelamento total do texto.

Do outro lado da trincheira, a viúva espera que seu caso sirva de exemplo e ajude outras mulheres que enfrentarem o mesmo dilema. Após ter seu pedido negado pelo tribunal de Rennes, no noroeste da França, Laurenne apela nesta quinta-feira ao Conselho de Estado, órgão máximo da jurisdição administrativa.

O que a motiva é o projeto que organizou com o marido, Roy Caballero, que faleceu em abril de 2019, aos 27 anos, devido a uma leucemia. "Sempre quisemos uma grande família", diz a viúva, em entrevista ao canal France 3.

O casal tem duas filhas, uma delas nascida após fecundação in vitro. O procedimento foi realizado quando Roy já estava internado no Hospital de Brest, no noroeste da França. Antes do falecimento dele, o casal planejou ter "ao menos" uma terceira criança, alegam os advogados de defesa.

"Falei com meus filhos, com minha família, com a família do meu marido e todos eles me apoiam. Mas sei que sempre haverá pessoas que vão dizer que é um absurdo, que meus filhos não terão pai. Estou totalmente consciente disso. Vou lutar até o fim", reitera.

Tranferência de embriões à Espanha

Quatro embriões seguem armazenados no hospital onde Roy faleceu, mas Laurenne não pode mais ter acesso a eles. Impossibilitada pela lei de realizar um procedimento post-mortem, ela tenta, desde o ano passado, transferir as células já fecundadas para a Espanha, que autoriza a prática.

"Em junho de 2019, telefonei para o hospital para consultar o ginecologista com quem realizamos o primeiro procedimento. Queria falar sobre meu desejo de engravidar novamente. Mas me disseram que a lei francesa me proíbe de utilizar os embriões armazenados e que eu não tinha nenhum direito sobre eles após o falecimento do meu marido", relembra.

Outro obstáculo enfrentado pela viúva é que a Espanha autoriza a inseminação post-mortem no prazo de até 12 meses após a morte do marido. Por isso, a luta de Laurenne também é contra o tempo, já que no próximo mês de abril, a morte de Roy completará um ano.

Injustiça com as mulheres viúvas

Para a defesa de Laurenne, há uma desigualdade no próprio projeto de lei da PMA, que trata dos direitos das mulheres solteiras e dos casais de lésbicas realizarem uma inseminação artificial, mas não considera casos de mulheres viúvas.

"É uma decisão muito difícil", afirma uma das advogadas, Catherine Logéat, em entrevista à France 3. Segundo ela, é preciso que a futura lei também leve em consideração casos de famílias nas quais o esposo faleceu, mas onde já existia um projeto de procriação.

De fato, a situação de Laurenne está longe de ser uma exceção. Segundo dados do Conselho de Estado, a conservação de embriões para um projetos de procriação medicamente assistida envolve atualmente cerca de 50 mil casais na França. Além disso, cerca de cem mil casais conservam os gametas masculinos para uma futura fecundação in vitro.