TCM: filhos de mães violentadas dormem com fome em abrigo municipal de SP

Auditoria do Tribunal de Contas do Município (TCM) realizada em duas secretarias municipais de São Paulo concluiu haver "ineficácia" nos serviços da prefeitura destinados à mulher vítima de violência.

Na Casa de Passagem —abrigo provisório para mulheres em situação de violência e seus filhos menores de 18 anos— mães disseram aos técnicos do TCM que a comida é insuficiente. "As mulheres assinalaram que principalmente as crianças sentem fome antes de dormir", lê-se no relatório consolidado da auditoria.

"Estamos falando de mulheres em situação de vulnerabilidade que precisam de respaldo jurídico, emocional e psicológico. Elas recebem comida às 19h e só vão comer de novo no outro dia. E não podem repetir. As crianças não podem repetir nem sequer a fruta. Isso demonstra que a política para as mulheres não é prioridade", afirma Angélica Fernandes, coordenadora do Grupo de Trabalho de Gênero do Observatório de Políticas Públicas do TCM.

Como o abrigo é provisório, mulheres e seus filhos podem permanecer no local por, no máximo, 30 dias —salvo exceções. A Casa tem capacidade para 19 pessoas. No dia da visita do TCM, havia 16 abrigados — 5 mulheres e 11 crianças.

Doria, Covas e Nunes

As secretarias municipais auditadas foram a de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) e de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC). Esta foi a primeira vez que o Tribunal realizou auditoria sobre políticas relacionadas à violência contra a mulher.

"A política pública para mulheres desenhada atualmente é frágil", informa o documento do TCM, que atribui o diagnóstico às mudanças constantes nas orientações dos serviços ofertados a mulheres, "adequando-se à discricionaridade da gestão vigente".

A inspeção abrangeu o período de 1 de janeiro de 2018 a 31 de agosto de 2022. São Paulo teve três prefeitos nesse intervalo: João Doria (PSDB), Bruno Covas (PSDB) e Ricardo Nunes (MDB), atual titular do cargo.

Segundo relatório da auditoria, foram verificados "pontos críticos que atuam como gargalos, dificultando o acesso aos serviços prestados". Uma das conclusões dos técnicos do TCM é que a divulgação dos serviços é ineficiente.

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Em nota enviada a Universa, a prefeitura informou que irá atender a todos os questionamentos feitos pelo TCM, aumentando o quadro de recursos humanos e aprimorando a divulgação dos serviços de atendimento à mulher.

Desconhecimento do Ônibus Lilás

Um exemplo da "ineficiência" da divulgação apontada pelo TCM é o Ônibus Lilás, que desde 2020 esteve em atividade em 12,9% do tempo, conforme a auditoria. Trata-se de uma unidade móvel de atendimento às mulheres, cuja existência é desconhecida por 87% dos entrevistados pelos técnicos.

Durante quase um ano —entre novembro de 2021 e setembro de 2022— a unidade não funcionou, "paralisada em manutenção", conforme o relatório. "O Ônibus Lilás não atinge sua finalidade de promover o acesso a direitos e serviços para as mulheres vítimas de violência", informa.

Além do Ônibus Lilás, a auditoria identificou problemas em outros serviços da Prefeitura de São Paulo, dentre os quais se destacam os seguintes:

Centro de Referência da Mulher: oficinas são realizadas por voluntários, não por profissionais contratados.
Casa da Mulher Brasileira: insuficiência de servidores. As nove unidades "estão abertas com 20,37% dos recursos humanos necessários".
Casa Abrigo: o serviço "mostra-se em situação extremamente precária quanto ao quantitativo de profissionais". Dos 17 profissionais previstos em lei, há apenas dois. "Além disso, a SMDHC promove rotatividade de profissionais entre os equipamentos para suprir lacunas em caso de férias, licenças ou outras casualidades, o que compromete a relação de confiança e o vínculo com a usuária atendida".
Casa de Passagem: em entrevista aos auditores, apenas 32% das abrigadas responderam estar satisfeitas com a alimentação fornecida. Também disseram que não há brinquedos ou recreação para as crianças e que enfrentam tempo ocioso, o que levou o TCM a apontar "possível irregularidade quanto à prestação de atividades em grupo", visto que a unidade apresentou aos técnicos um cronograma completo de dinâmicas.

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Os conselheiros do TCM determinaram que a Prefeitura de São Paulo apresente, no prazo de 90 dias, um plano de ação para as secretarias envolvidas no atendimento às mulheres vítimas de violência.

Este plano deve conter, dentre outras medidas, adequação do quadro de profissionais da Casa de Passagem e garantia de alimentação e atividades para mulheres e crianças.

Em relação ao Ônibus Lilás, o TCM determina que a prefeitura elabore um cronograma de ações para que a unidade móvel esteja apta a circular em bairros onde não há equipamentos fixos para as mulheres vítimas de violência.

"Após o prazo de 90 dias, nossa auditoria vai realizar um monitoramento do plano de ações. Caso o plano não seja entregue —ou esteja incompleto—, serão aplicadas sanções previstas no regimento do TCM, como multas", explica Daniela Cordeiro de Farias, assessora de controle externo do Tribunal. "O plenário também pode se reunir para definir outra forma de responsabilização", diz.

Outro lado

Procurada por Universa para comentar o relatório do TCM, a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da prefeitura informou, por meio de nota, que:

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Todos os questionamentos do TCM serão atendidos dentro do prazo definido pela Corte.

Sobre o funcionamento de equipamentos com "quadro de recursos humanos inferiores ao necessário": "Hoje, a gestão dos equipamentos é feita de forma direta. Para resolver a questão de maneira mais rápida e eficaz, passará a ser feita de forma indireta, com a contratação de Organizações da Sociedade Civil (OSC)."

Ressalta, no entanto, que "o próprio TCM interrompeu duas vezes os processos de seleção de OSC's e, por isso, ainda não foram concluídos.

"A gestão dos serviços, que agora serão padronizados e chamados de "Casa da Mulher", será aperfeiçoada com a contratação de profissionais, com remuneração de mercado.

A Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) informou que:

"Em cumprimento aos apontamentos do TCM, incluiu no Projeto de Lei Orçamentária Anual 2024 a ampliação e aprimoramento de divulgação da oferta de serviços da rede socioassistencial e benefícios às mulheres em situação de violência."

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"No período entre março e dezembro de 2022, ocorreram diversas capacitações com os serviços especializados que prestam atendimento às mulheres vítimas de violência na rede socioassistencial do município."

"A rede socioassistencial da prefeitura possui 15 CDCM's (Centro de Defesa e de Convivência da Mulher) que realizam desde os atendimentos psicossociais e orientações até o encaminhamento jurídico necessário à superação da situação de violência, contribuindo com a construção progressiva da autonomia e do protagonismo das mulheres que vivem em situação de rua, vulnerabilidade ou risco social.

Essa modalidade de serviço possui 1.610 vagas, com atendimentos de segunda a sexta-feira, por oito horas diárias.

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