Topo

Mutirão de DNA ajuda mães a garantir direitos de filhos: 'O pai existe'

Stephanie e a filha Alice Roberta, que nasceu seis meses após a morte do pai - Pryscilla K. / UOL
Stephanie e a filha Alice Roberta, que nasceu seis meses após a morte do pai Imagem: Pryscilla K. / UOL

Anahi Martinho

Colaboração para Universa, em São Paulo

03/11/2022 04h00

Foi pela televisão que Camila Pereira da Silva, 31 anos, descobriu que haveria o mutirão "Encontre Seu Pai Aqui", uma parceria do Instituto de Medicina Social e de Criminologia (IMESC), com o Ministério Público de São Paulo, onde as famílias podem comparecer voluntariamente para realizar exames de DNA de forma gratuita. Camila contou com a ajuda de dona Deise, mãe de seu ex, já que o pai de Lucca, de 11 meses, não quis comparecer. "É uma questão de honra fazer esse teste. É muito ruim ser humilhada, desprezada, xingada, por conta de um serzinho tão lindo. Não consigo entender", desabafou Camila para Universa, no dia 30 de setembro, quando foi colher o sangue do filho e da avó.

Quando descobriu que estava grávida, Camila passou a ser ameaçada pelo pai de seu bebê. O homem, que não queria assumir a paternidade da criança, passou a gestação inteira perseguindo Camila. "Ele dizia que eu não podia transformá-lo em pai. Que ia me pegar na rua para me levar numa clínica para tirar a criança. Foi horrível". O resultado do teste de Lucca saiu cerca de 25 dias depois, confirmando o parentesco entre avó e neto.

Em novembro do ano passado, Camila deu à luz Lucca, que nasceu prematuro extremo, portador de uma síndrome congênita e passou os primeiros 94 dias de vida na UTI. O pai nunca o conheceu, não registrou e não deu suporte financeiro nem emocional para Camila.

Mãe de outras três crianças, de entre 7 e 12 anos de idade, ela teve que deixar de trabalhar para cuidar do caçula, que exige cuidados especiais.

"Às vezes, tenho vontade de deixar pra lá. Penso: 'meu filho é especial demais para ter um pai desse'. Mas não posso tirar os direitos do meu filho. Ele tem pai, esse pai existe, ele precisa reconhecer ele como filho, independente se ele quiser ou não ser pai", afirma.

Logo que o menino deixou a UTI, Camila chegou a marcar um exame de DNA em rede particular, mas no dia e horário combinados, o pai não apareceu. "Arrumei o dinheiro para fazer o teste, deixei ele escolher a data e o horário. Ele é motorista de aplicativo, então para ele é fácil comparecer. Cheguei lá no horário marcado, fui de ônibus, carregando o bebê, e ele me ligou e disse: 'eu não vou, se você gostou ou não, o problema é seu".

Camila Silva, que luta para reconhecer a paternidade do filho Lucca - Anahi Martinho - Anahi Martinho
Camila Silva, que luta para reconhecer a paternidade do filho Lucca
Imagem: Anahi Martinho

Diante de nova recusa do pai de Lucca em fazer o teste, ela apelou para a mãe dele, dona Deise, que topou fazer o DNA no lugar do filho.

Com o resultado do teste nas mãos, Camila se diz aliviada. "Foi constatado que é neto dela, filho do filho dela. Agora é esperar os próximos passos, saber como vou fazer para ele registrar o bebê e ele pelo menos pagar o que é devido, já que o amor de um pai, ele nunca vai poder ter", diz a mãe.

"Calar a boca de quem diz que não são filhos dele"

Stephanie e Roberto viviam juntos há quatro anos e eram pais do pequeno Dhavi, de dois anos, quando sofreram um acidente de moto numa ladeira de Mauá (SP), às vésperas do Natal de 2021. Roberto tinha 27 anos e morreu na hora. Stephanie, também de 27, teve fratura no crânio, foi internada e quando deixou o hospital, descobriu que estava grávida.

A caçula Alice Roberta, batizada em homenagem ao pai, nasceu em julho, seis meses depois de sua morte.

Viúva e com dois filhos pequenos, Stephanie sequer pode contar com a ajuda da família de Roberto, que passou a contestar a paternidade das duas crianças. "Esperaram ele morrer para vir falar que eles não são filhos dele. Já ia fazer quatro anos que a gente estava junto. Isso foi muito ofensivo, humilhante", conta. Segundo ela, os avós paternos têm pouco convívio com Dhavi e nem fizeram questão de conhecer Alice.

Foi uma meia-irmã de Roberto, Ana Paula, que ouviu no rádio sobre o mutirão de DNA. Ana Paula é a única pessoa da família de Roberto que se solidariza com Stephanie, a ajuda nos cuidados com as crianças e ainda se propôs a fazer o teste de DNA para comprovar a paternidade do irmão.

"Quando dei a notícia [da gravidez] para a mãe e o padrasto do Roberto, eles falaram: 'Será que é dele? Ela andava em cima da moto pra lá e pra cá, não tinha barriga nenhuma, agora aparece grávida?'", relata Ana Paula, tia da criança.

"Eu falei: 'mesmo assim, eu vou ajudar. Até ter certeza se são filhos dele ou não, são crianças e precisam de ajuda'. Aí comecei a me envolver mais, fico bastante com o Dhavi, tento ajudar porque agora ela ficou sozinha e com duas crianças. É muito constrangedor dizerem isso para ela: 'não é meu neto'".

Os dois bebês e Ana Paula tiveram seus dedos furados no laboratório do IMESC. Se for comprovado que Ana Paula tem parentesco, ou seja, é tia das crianças, Stephanie poderá finalmente incluir o nome do pai na certidão de nascimento da caçula.

"E também calar a boca de quem diz que eles não são filhos dele. Já esfrega na cara. Eu sou dessas", diz a jovem.

Até o fechamento desta matéria, Stephanie ainda não havia obtido os resultados dos exames.

"Não sinto falta de ter um pai, nunca tive"

Aos 21 anos, Cristiane engravidou entre o fim de um namoro e o início de outro. Na dúvida de quem era o pai, acabou registrando sozinha a filha Alice, hoje com nove anos. Alice foi criada com a ajuda da avó e da tia, mãe e irmã de Cristiane, e nunca soube quem era seu pai.

Há dois meses, Cristiane teve sua segunda filha, Emanuelle. No meio da gravidez, ela se separou do pai da bebê, com quem tinha uma relação conturbada. Sozinha novamente e agora com duas filhas, Cristiane decidiu enfim procurar o pai da primogênita.

"Naquela época eu era muito nova, não sabia o que queria. Hoje sei o que eu quero", afirmou a dona de casa, 31 anos. Ela convocou os dois possíveis pais para fazerem o DNA, mas só um deles apareceu.

Michel, 32 anos, é marmorista, divorciado e pai de outros três filhos, um menino mais velho e duas meninas gêmeas. Ele estava entusiasmado, torcendo para o exame dar positivo.

"É o que todo mundo está querendo", disse o marmorista. Mesmo após nove anos sem contato com a mãe de Alice, ele "sempre soube em seu coração que ela podia ser filha dele", conta Cristiane e continua: "Acho que vai ser muito bom para ela. Ela não tem pai, não tem distração nenhuma. A pensão vai ser uma ajuda e o convívio afetivo vai ser bom para ela também. Vai ter um pai pra puxar a orelha".

Já a pequena Alice não parecia tão entusiasmada. "Não sinto falta de ter um pai, nunca tive", deu de ombros.

O resultado chegou às mãos de Cristiane cerca de 25 dias depois. O exame deu negativo. Michel não é o pai de Alice. "Fiquei triste", afirmou a mãe, que agora está em busca do outro suposto pai e terá que fazer um novo exame.

Ação ocorrerá todos os meses

Cerca de 6 milhões de brasileiros não têm o nome do pai na certidão de nascimento. E este número só cresce. Somente em São Paulo, neste ano, 17 mil crianças foram registradas sem o nome do pai.

O mutirão "Encontre Seu Pai Aqui", parceria entre o Ministério Público de São Paulo e o IMESC, procura minimizar esse índice de abandono parental.

Segundo o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mário Sarrubbo, o fenômeno do abandono parental se deve a um "déficit de cidadania" predominante na cultura brasileira. "O Brasil ainda tem um déficit muito grande de cidadania. As pessoas não sabem o alcance de seus direitos, não sabem quais são os deveres do estado e isso acaba criando uma deformação comportamental na sociedade, que faz com que um pai deixe de registrar seu filho ou o abandone", afirma.

Sarrubbo acrescenta que a pandemia de covid-19 foi um fator de expansão dessa ausência de paternidade no registro. "Desestabilizou todo o sistema, separou famílias, fraturou o sistema de harmonia familiar e a partir daí muitas das relações familiares foram deterioradas", diz.

Segundo Juliana Lugani Pinto, chefe de gabinete da secretaria de Justiça e Cidadania, a ação vai muito além de cobrar alimentos dos progenitores. Trata-se de honrar o princípio fundamental da dignidade humana. "E o legal dessa ação é a quebra de paradigmas e quebra de burocracia. As pessoas podem vir de forma espontânea, sem precisar judicializar a demanda. Precisamos, claro, que o suposto pai venha em comum acordo com a mãe", diz Lugani Pinto.

A responsável técnica pelo laboratório de DNA do IMESC, Maria Elisa Teserolli, afirma que cerca de 4 mil amostras de sangue passam pelo laboratório por mês. Os profissionais do laboratório analisam 23 regiões do DNA, sendo que o sugerido pela comunidade científica é de apenas 12 regiões. "Evitamos ao máximo soltar um laudo inconclusivo", afirma Teserolli.

O maior desafio é fazer teste com material exumado, ou seja, em pessoas que já morreram. Um pedaço de osso é enviado ao laboratório e dele é extraído o conteúdo do DNA. Nos vivos, o exame é feito com apenas uma picadinha no dedo. Uma gota de sangue já é suficiente para comprovar laços entre pais e filhos.

O mutirão acontecerá todos os meses. As próximas datas são 25 de novembro e 9 de dezembro, das 7h às 16h. O Instituto de Medicina Social e Criminologia de São Paulo fica na Rua Barra Funda, 824. Não é necessário agendar horário.