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Banquetes e vendavais: a vida como chef de cozinha em barcos de bilionários

A chef brasileira Ana Simon precisou participar de um curso de sobrevivência no mar - Arquivo Pessoal
A chef brasileira Ana Simon precisou participar de um curso de sobrevivência no mar Imagem: Arquivo Pessoal

Nina Rahe

Colaboração para Universa, de São Paulo

21/08/2022 04h00Atualizada em 31/08/2022 17h26

Dependendo de como está o mar, a chef paulistana Ana Simon, 37 anos, não pode cozinhar. Para a sua segurança, se há vento forte —e dependendo da posição do barco em que está—, ela não mexe nas panelas sob risco de se queimar ou de que os instrumentos de seu ofício voem longe. No veleiro em que trabalha atualmente, os riscos são maiores, mas, mesmo em um barco a motor, que tem mais estabilidade, Ana já chegou a se queimar quando, no sul da Sardenha, a dona da embarcação pediu um jantar em meio a uma ventania. "Hoje sou a primeira pessoa que fala não e os capitães e donos aceitam", explica a chef, que na ocasião precisou oferecer sanduíches.

Ana Nica Rosa - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
A personal chef Ana Simon em ação no restaurante Marc Fosh, em Palma de Mallorca, na Espanha
Imagem: Arquivo Pessoal

Ana saiu do Brasil há 13 anos para estudar inglês e depois cursou marketing no London College of Fashion, mas tinha o sonho de estudar no Le Cordon Bleu, que está entre as mais tradicionais escolas de culinária do mundo. Sem incentivo de seus pais, no entanto, ela precisou trilhar um caminho mais longo até poder se dedicar à gastronomia.

Depois de formada, começou trabalhando como assistente em restaurantes que iam de grego a libanês. Após essa temporada, que durou quatro anos, continuou sua jornada em diversos países ao redor do mundo: fez um curso profissionalizante na Tailândia, aprendeu sobre a comida local em uma vila de pescadores no Sri Lanka e de lá saiu para o Four Seasons de Chiang Mai (Tailândia) antes de passar por uma formação acadêmica no El Celler de Can Roca, um dos melhores restaurantes do mundo, em Barcelona, e no Asador Etxebarri, no País Basco.

Acabou indo parar no Marc Fosh, restaurante em Palma de Mallorca (Espanha), onde permaneceu por um ano vendo o movimento dos barcos enquanto preparava a comida de muitos passageiros e tripulantes. "Esses clientes sempre diziam que precisavam de pessoas para cozinhar. Entendi que esse trabalho acontecia por temporada e gostei da ideia de ter mais flexibilidade", explica.

Ana - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Velejando entre Mykonos e Paros, na Grécia
Imagem: Arquivo Pessoal

Mas, para atuar como chef de embarcações, Ana precisou participar de um curso de sobrevivência no mar. Foi onde, durante 12 dias, aprendeu como lidar com toda sorte de acidentes —de incêndios a naufrágio— e entendeu que, no barco, cada pessoa tem uma designação durante uma ocorrência. Se há fogo a bordo, por exemplo, no caso da chef, o primeiro passo é reportar ao capitão se há feridos ou, se há dano maior, ela pode pedir ajuda por meio de satélites ou até cortar o oxigênio para que o incêndio seja controlado mais rapidamente.

Acidente em alto-mar

Desde que escolheu essa profissão, em 2020, Ana já viu muitos acidentes, ainda que não tenha sido preciso atuar diretamente em nenhum deles. Uma vez, o dono voltou de um passeio malsucedido e decidiu içar o bote com ventos de 50 nós. Como resultado, o barco atingiu o ajudante de convés e quebrou sua clavícula. Para completar, este mesmo proprietário pediu que o capitão mudasse a localização da embarcação, que encalhou no meio da noite em uma posição de quase 90 graus.

Na primeira travessia que realizou, Ana acompanhou, durante 20 dias, dois irmãos ingleses que estavam levando o barco recém-vendido de Palma para a Croácia. Bem equipada para uma viagem que contaria com poucas paradas, a primeira lição que aprendeu foi exercitar a paciência. Ali, logo percebeu que, no barco, quando os donos pedem o almoço, não significa que eles irão esperar para comer. "Fiz uma massa com camarão e eles saíram para nadar. Eu tinha um tempo para servir, senão não ficaria bom, e precisei preparar tudo de novo", lembra Ana. "Percebi que é preciso esperar até o último segundo, quando todos estão sentados na mesa, para começar a soltar os pratos."

Ana Nica Rosa - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
A chef no mercado central de Atenas
Imagem: Arquivo Pessoal

Um dos principais desafios, no entanto, é lidar com o humor dos empregadores. "Trabalhei para pessoas que mudavam o gosto culinário em questão de horas, ou então viravam gluten free de repente", diz. No segundo barco em que atuou, um Explorer de 25 metros, apesar de o casal ítalo-suíço, com atuação na área farmacêutica, ter aprovado um menu previamente, os dois discutiam a cada dia sobre o que iriam comer. "Ela queria que ele fosse mais saudável e era sempre uma briga. Todos os dias precisava de uma conversa para entender o que eles iriam querer no café, no almoço e no jantar", explica Ana, que acompanhou o casal por uma temporada de mais de quatro meses.

Trufa, caviar, wagyu

Já na sua terceira experiência, para uma família alemã, com quatro filhos, Ana precisava preparar seis pratos diferentes a cada refeição. "Em um dia, a mãe queria comer salada de burrata com pêssego flambado, menta e rúcula; o marido, steak tartare; e os filhos: sushi, pad thai, hambúrguer e o último steak e fritas", conta. A dona, que era uma das principais herdeiras da Alemanha, também acabou comprando uma casa na Sardenha e passou três meses com seu barco de 39 metros ancorado na região. Como resultado, a equipe teve dois dias livres na temporada toda. "Trabalhava 17 horas todos os dias porque eles não saíam do barco e, se eles não saem do barco, não há folga", lembra Ana.

Ana - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Ana empratando um crudo de John Dory, azeite de mandarina, oine nuts, rúcula e carasau nas Ilhas Madalenas, na Sardenha
Imagem: Arquivo Pessoal

Com experiência prévia em restaurantes, onde há sempre o mesmo cardápio, o interessante de trabalhar em embarcações, para ela, é que há a possibilidade de experimentar diferentes tipos de culinária. "O almoço pode ser asiático e o jantar, comida francesa, e a gente trabalha com iguarias muito interessantes, como trufa, caviar, wagyu", diz a chef. O orçamento, que passa longe de qualquer limitação, também permite que a tripulação se alimente de acordo com o menu dos empregadores.

Hoje, trabalhando como personal chef de um senhor aposentado que vive entre a Grécia e a França, que foi dono de uma rede de restaurantes nos Estados Unidos e cujo melhor amigo é brasileiro, Ana prepara, para além das receitas de outros tantos países, itens como caipirinha e feijoada.

No barco a vela deste investidor, que possui 30 metros, os equipamentos para kite e windsurfe não só estão à disposição da tripulação como toda a equipe passou a velejar junto com ele. "Eu não tinha experiência e estou adorando aprender", conta a chef. "Houve um momento em que pensei em desistir, mas essa experiência foi um divisor de águas. Todo dia acordo, faço pão, sirvo café, modifico a cozinha inteira para que os itens não se quebrem durante a travessia e saímos todos velejando."