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Caso Marotti: Júri popular é tolerante para crimes contra mulheres? Entenda

Mulheres fazem manifestação contra sentença do caso Marotti em Nova Friburgo (RJ) - Reprodução/@mulheresnaserra
Mulheres fazem manifestação contra sentença do caso Marotti em Nova Friburgo (RJ) Imagem: Reprodução/@mulheresnaserra

De Universa

18/02/2022 04h00

Na quarta-feira (9), Rodrigo Alves Marotti foi a julgamento em Nova Friburgo (RJ) por ter matado a ex-namorada e uma amiga dela, que foram trancadas no banheiro de uma casa em que ele ateou fogo e bloqueou a saída. O júri popular disse que não houve "feminicídio". Contrariando evidências e os protestos das famílias das vítimas, Marotti foi condenado a pouco mais de 19 anos de prisão apenas pelo crime de incêndio, porque os jurados entenderam que não houve intenção de matar. O MPRJ já recorreu para submeter o acusado a um novo júri, na intenção de reconhecer o duplo feminicídio, e grupos de mulheres da cidade pressionam por nova decisão.

Em outra decisão, de 2016, em Belo Horizonte, o júri absolveu um homem que tentou matar a mulher a facadas, alegando ciúme. Eles entenderam que o réu foi, sim, responsável pela morte, mas decidiram por absolvê-lo por entenderem que o agressor agiu em "legítima defesa da honra" — o Ministério Público recorreu, o caso chegou a ir para o STF (Supremo Tribunal Federal), mas a decisão foi mantida.

Como explicam a advogada Luiza Nagib Eluf, autora do livro "A Paixão no Banco dos Réus" (ed. Saraiva), e a promotora de Justiça Fabiana Dal'Mas, presidente da Associação Brasileira de Mulheres de Carreira Jurídica de São Paulo, um júri popular é formado por pessoas comuns e não técnicos em direito, por isso, acontece com frequência refletir ideais machistas da sociedade na hora de decidir pela condenação ou absolvição de um homem acusado de cometer feminicídio.

"Existe uma certa tolerância da população diante de crimes contra a mulher, como a violência doméstica e o feminicídio. O fato de os jurados serem pessoas leigas leva essas raízes discriminatórias da sociedade para o tribunal", resume a Dal'Mas.

A partir desse raciocínio, surge um questionamento: em casos de feminicídio, o julgamento deveria ser de outra maneira para não se correr o risco de atenuar a pena do agressor?

Universa conversou com especialistas para explicar quais os impactos do júri em casos de crimes contra mulheres e responder a outras perguntas sobre esse sistema — como funciona, quais crimes julga e o que os jurados podem decidir. Leia abaixo.

Júri popular é mais tolerante com a morte de mulheres?

Não necessariamente, dizem as especialistas.

"O tribunal do júri é formado por pessoas leigas, que vão ouvir o que a acusação e a defesa têm a dizer e vão decidir se o réu é culpado ou não. É inevitável que entrem na conta os valores sociais, a moral e os 'bons costumes', e aí, claro, a mulher é quase sempre apedrejada, mesmo depois de morta", percebe Eluf, procuradora aposentada do Ministério Público de São Paulo e advogada de cinco vítimas do médium João de Deus.

Ao pensar em alternativas para julgar crimes contra mulheres, ela afirma que não seria uma boa estratégia formar um júri mais feminino para reverter essa lógica.

"As mulheres também podem seguir uma linha de pensamento machista. Muitas, conscientemente ou não, acham que devem obediência aos maridos e que, se a mulher trair, merece algum tipo de punição. É um padrão social: foi ensinado para as pessoas que a mulher não pode sair da linha."

Vale lembrar que, no ano passado, o STF decidiu que não poderá mais ser aceita nos tribunais a tese da legítima defesa da honra, ou seja, quando o réu usa como justificativa para seu crime uma suposta traição ou outra atitude da mulher, que o levaria a cometer o crime. Apesar disso, dizem Eluf e Dal´Mas, a ideia permanece no imaginário social e nada impede que esteja na cabeça dos jurados.

Embora as três especialistas concordem até aqui, a advogada Maíra Zapater, especialista em Direito Penal e Processual e professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), lembra que, mesmo em casos em que o réu é julgado por um juiz, que em tese tem conhecimento técnico para agir de acordo com a lei, acontecem episódios de machismo e desrespeito às mulheres vítimas.

"Crimes que não vão para júri, como roubo ou tráfico, também não estão livres dos preconceitos pessoais de um juiz. Claro que ele tem como considerar somente o que está na lei, mas é comum ver manifestações de viés machista, homofóbico ou racializado", pondera, lembrando da audiência em que Mariana Ferrer, vítima de estupro, foi desrespeitada pelo advogado de defesa de seu agressor, em 2020, e tanto juiz quanto promotor não interferiram para repreendê-lo.

"Ali tinha um juiz técnico e nitidamente houve discriminação de gênero", diz.

"A gente não pode se restringir à ideia de que o júri sempre vai julgar de forma machista e sempre vai abraçar as ideias de crime passional e legítima defesa da honra, por exemplo."

Quais casos vão a júri popular?

Vão a júri popular crimes dolosos contra a vida, ou seja, crimes que foram praticados com a intenção de matar. São eles: homicídio, incluindo feminicídio, infanticídio, participação em suicídio e aborto. "Os demais, mesmo que resultem em morte, como o latrocínio [roubo seguido de morte], não vão a júri", diz Eluf.

Zapater explica que o júri popular é uma tradição que vem desde a Idade Média e que é vista como um direito do réu: "Esse é um instrumento de defesa porque a Justiça entende que é um direito do cidadão ser julgado por seus iguais, ou seja, por membros da comunidade, como ele."

Como o júri é formado?

Os sete jurados são escolhidos por sorteio entre membros da comunidade local onde o crime aconteceu, mas a Justiça tem o dever de garantir que os membros sejam imparciais.

Por isso, são descartados, por exemplo, pessoas que têm qualquer grau de parentesco ou relação anterior com o réu ou com a vítima, e advogados e promotores de Justiça, pois têm conhecimento da lei e uma visão acusatória.

"Se for alguém que tanto a defesa quanto a acusação suspeitam que já está com o pensamento formado, que já tem noção do que vai fazer, trata-se de um jurado suspeito, também não entra", completa Eluf.

Além disso, o promotor, que é quem acusa, e o advogado de defesa do réu podem descartar até três jurados sem justificativa. O primeiro dá preferência a pessoas que pareçam mais tendenciosas a condenar o réu, e o segundo, a absolvê-lo — a depender de suas estratégias, eles podem, por exemplo, descartar alguns homens na tentativa de formar um júri mais feminino ou mais jovem, por exemplo.

Não existem regras que proíbam que um júri seja formado apenas por homens ou apenas por brancos, por exemplo. "Mas deveriam existir", defende.

O promotor e o advogado de defesa do réu podem descartar até três jurados sem justificativa - iStock - iStock
O promotor e o advogado de defesa do réu podem descartar até três jurados sem justificativa
Imagem: iStock

E se a decisão do júri for considerada contraditória?

Neste caso, elas explicam, o Ministério Público pode recorrer, na tentativa de demonstrar que os jurados foram parciais ou que não entenderam os fatos apresentados no julgamento.

"Se o MP recorrer e o tribunal entender que o júri errou, a decisão pode ser anulada e o réu submetido a um novo júri", explica Eluf. Se isso acontecer, o processo começa do zero: sorteio, formação do júri, nova decisão e nova sentença.

Quando os jurados tomam uma decisão, o juiz ou juíza não pode dar uma sentença diferente. Isto é, se os jurados decidirem que houve morte, mas não houve intenção de matar, o juiz deve calcular a sentença de acordo com o definido para homicídio doloso.

"O juiz produz a sentença em termos técnicos, mas quem decide pela absolvição ou condenação, e quais agravantes serão considerados, são os jurados leigos", fala Zapater.

Como evitar que o machismo faça parte do júri?

Embora façam críticas ao tribunal do júri, nenhuma delas acredita que ele deve ser extinto, porque entendem que esse sistema de julgamento "tem seu papel".

Para as três juristas ouvidas nesta reportagem, a solução é uma só, e de longo prazo: educar a sociedade em matéria de discriminação de gênero.

"O júri tem seu papel, ele é democrático, mas precisamos pensar numa construção, por meio da educação, que faça as pessoas entenderem que essas violências são inaceitáveis e que a culpa nunca é da vítima", defende a promotora de Justiça Fabiana Dal'Mas.

"É triste ver esse retrato da sociedade brasileira entre os jurados, mas eu não acho que o júri é um sistema ruim. O que precisamos é de muito mais mulheres trabalhando na Justiça", acredita Luiza Nagib Eluf.

Para Maíra Zapater, "esse problema só será resolvido quando o povo tiver outros valores".

"Não adianta esperar que o júri apresente uma decisão de acordo com a os tratados internacionais de Direitos Humanos porque a cabeça dos jurados, muitas vezes, já está feita. É preciso mudar os costumes, ensinar o respeito à mulher e frisar sempre que as mulheres têm os mesmos direitos dos homens".