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Corpo feminino: por que é tão difícil se desvencilhar do olhar do outro?

Não existe corpo perfeito, existem corpos - jacoblund/iStock
Não existe corpo perfeito, existem corpos Imagem: jacoblund/iStock

Karina Hollo

Colaboração para Universa

13/02/2022 04h00

No início do mês, a atriz Nicola Coughlan, que vive a Penelope de "Bridgerton", série da Netflix, foi em suas redes sociais desabafar como se sente quando recebe directs com críticas a respeito de sua imagem. "Se você tem uma opinião sobre meu corpo, por favor, não compartilhe comigo. Sou apenas um ser humano da vida real e é muito difícil suportar o peso de milhares de opiniões sobre sua aparência sendo enviadas todos os dias", escreveu.

A atriz Nicola Coughlan, de "Bridgerton" - Reprodução Instagram @nicolacoughlan - Reprodução Instagram @nicolacoughlan
A atriz Nicola Coughlan, de "Bridgerton"
Imagem: Reprodução Instagram @nicolacoughlan

A modelo, apresentadora e body activist Letticia Munniz, por aqui, viveu experiências parecidas e garante que o amor próprio é o novo sexy. "Já passei por isso. Entrei em depressão e engordei bastante quando a minha avó morreu. E comecei a receber muitas mensagens pontuando que eu tinha engordado. É muito chato, 'você acha que eu não sei? Tenho espelho em casa, você não precisa me avisar'. Esse é o problema das pessoas quererem falar sobre o corpo dos outros: elas não sabem o que se passa na nossa vida", diz Letticia. Mas porque é tão difícil a gente abraçar o autoamor e a autoaceitação, se desvencilhar do olhar do outro?

Corpo em discussão

Essa ideia do corpo feminino ser constantemente analisado vem de longa data. "Ela faz parte do processo civilizatório em que a mulher foi colocada, nesse lugar de objetificação. Freud debruçou muito sobre esse tema e começou trabalhando com as histéricas e, durante muitos anos, a vontade dessa mulher era a de ser desejada, poder casar, ter filhos, manter aquele marido", analisa a psicóloga Ana Volpe. "Quem definia o 'ser mulher' era o homem ao seu lado, fosse ele pai, irmão ou marido. Em muitos países no Oriente ainda é assim, para uma mulher viajar, ela precisa de autorização. Então, diante dessa perspectiva, o corpo dela também é julgado, é um objeto."

Bridgerton 2ª temporada - Divulgação/Netflix - Divulgação/Netflix
A atriz Nicola Coughlan (esq.), na série "Bridgerton"
Imagem: Divulgação/Netflix

O palco das redes sociais

"As redes sociais são um mundo de faz de contas, uma novela contemporânea", compara Ana. O que está lá, ela diz, é um recorte da vida, as pessoas vão compartilhar momentos de beleza, de alegria, que dão mais likes e engajamento. A realidade é outra. "Então, é preciso viver mais na realidade.

Se você equilibrar o tempo que fica nas mídias sociais e o tempo que fica na vida real, vai ver no dia a dia que existem todos os tipos de pessoas: altas, baixas, magras, gordas, todos os tipos de cores de pele, todos os tipos de cabelos e essa é que é a beleza da vida.
Ana Volpe, psicóloga

Muita opinião

"As pessoas geralmente falam do corpo de outras quando elas não estão dentro de um padrão de beleza e perfeição impostos pela sociedade, pelas mídias sociais e pela indústria da moda, da beleza, das dietas", explica Graziela Dassoler, psicóloga especialista em Obesidade e Comportamento Alimentar do Hospital das Clínicas/Faculdade Medicina USP. "Isto pode causar um enorme descontentamento com o corpo e com a alimentação, levando a uma relação conturbada com a comida. Em casos mais extremos, pode causar um transtorno alimentar", continua.

Quanto à opinião alheia, a gente tem que ser como a pele, que permite trocas, absorve substâncias, mas tem um limite para o que vai absorver. "Você precisa decidir o que vai deixar que te penetre de informação do outro. Temos que selecionar pessoas confiáveis, que sejam um bom parâmetro para as nossas escolhas, para quem somos, e como nos apresentamos. É importante ter esse feedback. Na psicanálise, se fala do 'olhar do espelho', é muito importante, pois a gente se constrói a partir do olhar do outro. Não dá para ser alheio à opinião alheia", analisa a psicóloga.

É importante ouvir o outro, mas desde que seja uma opinião de qualidade, de uma pessoa que saiba fazer críticas construtivas, em um ambiente amoroso.

A modelo e body activist Letticia Muniz - Reprodução Instagram - Reprodução Instagram
A modelo e body activist Letticia Muniz
Imagem: Reprodução Instagram

Curvas blindadas

Uma maneira de se blindar de comentários sobre o corpo, é parar de se preocupar com a forma e o peso e valorizar o que ele traz de bom, como o movimento, o prazer e a saúde. "Não precisamos amar o corpo, mas aceitá-lo como é, entendendo que cada um é diferente, e valorizá-lo pelas suas características únicas", fala Graziela.

Devemos também pensar nas pessoas que admiramos de verdade e se são as suas características físicas que valorizamos nelas.
Graziela Dassoler, psicóloga

Esse monte de opinião tende a se resolver a medida que vamos ocupando o nosso espaço e se apropriando dele de fato. "Não é só ter lugar de fala, é ter lugar; se apropriar da sua existência. E como lidar com isso? Com informação, com desmistificação, com uma argumentação sólida, com conhecimento e com autoestima", diz Ana.

Ditadura da beleza X autocuidado

"Fazer coisas que tragam bem-estar, cuidar do corpo, da saúde não faz ninguém ser refém do padrão de beleza", fala a psicóloga Daniela Faertes, especialista em terapia cognitiva e mudança de comportamentos prejudiciais. São coisas diferentes. "Não podemos confundir um movimento de resistência relacionado à autoaceitação, a 'eu me amar', com um movimento contrário, com que isso remeta a um descuido da própria saúde." Ela diz que no momento em que a gente briga com o corpo, a chance de achá-lo merecedor de cuidados diminui.

"Chamamos isso de uma dialética: há um processo de aceitação e também um direcionamento para a mudança. A gente precisa ter uma autoaceitação e, mesmo assim, isso pode implicar em um processo de mudança, de redirecionamento."

E qual o limite entre a autoaceitação e a busca pelo corpo ideal? A saúde. "É importante comer de acordo com os parâmetros de fome e de saciedade. Respeitando esta regulação interna, o corpo deverá ter o tamanho e formato característico de cada pessoa", diz Graziela.

Não existe corpo perfeito, existem corpos.

"Em tempos de mídias sociais, é muito benéfico quando pessoas influentes jogam luz sobre esse tema. Quando uma celebridade, uma mulher que é vista como referência se aceita, chancela para as que vêm atrás.

'Olha aonde eu cheguei, sou independente, tenho sucesso e sou do jeito que eu sou', isso é muito legal. Só que é um trabalho constante, contínuo e longo", observa Ana.

A adoração pelo corpo perfeito, pela magreza com músculos, com tônus, sem celulite, sem estria pode causar problemas que começam desde timidez até questões de personalidade, depressão, fobias comportamentais.

"Pode causar um excesso de autocrítica também, essa política de cancelamento tem que ser cancelada imediatamente. O excesso de perfeição, não aceitar nenhum defeito é uma projeção da rigidez. Os problemas podem ser pontuais, como não querer ir em uma festa porque está gorda, ou até os mais complexos como depressão, melancolia, transtornos alimentares - que são as formas mais graves decorrentes desse exagero da adoração ao corpo ideal", explica Ana. Fica o alerta!