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Como motéis da ditadura ajudaram mulheres a se libertarem sexualmente

Primeiro motel do país foi inaugurado durante o regime militar: "Havia investimento pesado na área", diz Murilo Fiuza, coautor de novo livro sobre o tema - Divulgação
Primeiro motel do país foi inaugurado durante o regime militar: "Havia investimento pesado na área", diz Murilo Fiuza, coautor de novo livro sobre o tema Imagem: Divulgação

Camila Brandalise

De Universa

31/10/2021 04h00

Dois motéis competem pelo título de primeiro do Brasil: o Holiday, no Rio de Janeiro, e o Playboy, em Itaquaquecetuba, na Grande São Paulo. Ambos foram inaugurados em 1968, primeiro dos anos de maior repressão da ditadura militar (1964-1985). Um boom de estabelecimentos do tipo ocorreu na sequência, sob financiamento do regime, que oferecia isenções fiscais e facilitava empréstimos para o setor moteleiro.

Vivia-se o auge do discurso da moral e dos bons costumes, que resultavam em censura. Não era permitido falar publicamente sobre sexo. Para as mulheres, era ainda pior. Apenas seis anos antes elas haviam sido autorizadas a trabalhar fora de casa sem precisar de permissão do marido, mas ainda não eram livres para expressar seus desejos. "Muitas delas viram nos motéis a oportunidade para exercerem abertamente sua sexualidade, algo absolutamente condenável na época, mas em efervescência", explica Murilo Fiuza de Melo, coautor do livro "Os Motéis e o Poder".

Livro "Os Motéis e o Poder" - Divulgação - Divulgação
Livro "Os Motéis e o Poder"
Imagem: Divulgação

Na obra, uma publicação independente e escrita em parceria com a jornalista Ciça Guedes, os autores desvendam os meandros da construção de um setor que hoje chega a uma arrecadação anual de R$ 4 bilhões, a relação íntima e contraditória dos motéis com a ditadura militar e com a sociedade brasileira e a ligação com as revoluções da época, principalmente a feminina.


Revolução sexual atropelou discurso dos militares

Os autores pontuam o ano de 1962 como o do recrudescimento da libertação sexual feminina, proporcionada pelo surgimento da pílula anticoncepcional e pela publicação do Estatuto da Mulher Casada, legislação que dava mais liberdade às esposas e permitia que vivessem fora dos auspícios masculinos, podendo trabalhar fora e viajar, por exemplo. "Elas queriam ser mais livres em todos os aspectos, e a questão sexual era um deles", diz Guedes, ressaltando que se refere às brasileiras de classe média e alta.

A nova mulher já era um assunto que tomava a agenda pública, mas não sem perseguição do governo. Em janeiro de 1967, a revista "Realidade" publicou um especial sobre a população feminina no Brasil, com reportagens sobre divórcio, aborto, ciência e o corpo feminino, relatos sobre maternidade solo e "vida livre". Foi proibida de circular na época e liberada quase dois anos depois, após uma queda de braço que foi até o STF (Supremo Tribunal Federal).

Em outro episódio, em 1969, a atriz Leila Diniz deu uma entrevista ao "Pasquim" em que falou 67 palavrões, substituídos por asteriscos, defendeu o amor livre, falou sobre sua primeira experiência sexual e pregou contra o casamento. Foi perseguida pelos militares, sob ameaça de prisão, e deu origem a um decreto levando seu nome, que exigia que qualquer publicação passasse antes pelo crivo do governo.

Os motéis, para Guedes, conseguiram "surfar a onda" do desejo de liberdade feminina. "Era o lugar onde elas poderiam fazer sexo porque queriam e gostavam, não por obrigação, como era no casamento e dentro de casa. Poderiam se soltar, viver seus desejos com um amigo, com alguém que tivessem acabado de conhecer", diz.

Mesmo com a resistência dos militares aos anseios femininos da época, esses novos espaços eram onde as mais 'prafrentex' podiam romper com a submissão da moral da época, de que a mulher tinha que ser do lar.

'Joguem minhas cinzas no motel Vip's'

As histórias que os fizeram chegar a essa conclusão foram sendo encontradas uma a uma. A maioria era breve, porque os registros sobre as frequentadoras dos estabelecimentos são escassos. Eles lembram que, na época, para entrar nos motéis, era solicitado documento de identidade apenas ao homem. "À acompanhante não, para evitar constrangê-lo", explica Guedes.

Um dos relatos diz respeito a uma senhora de mais de 80 anos, que morreu em 2014, e, em seu leito, pediu à neta que jogasse suas cinzas no motel Vip's, no Rio de Janeiro. Segundo a idosa, era o lugar onde ela tinha sido mais feliz na vida.

Melo ressalta que teve contato com vários relatos de mulheres afirmando terem frequentado motéis, dizendo serem "maravilhosos". "Mas esse lado da história ficou atrás de um véu moral, da ideia de que motel era só para trair, ou então que só era frequentado por mulheres sem moral. O que não é verdade. Casadas, solteiras, desquitadas, tinha de tudo."


Apresentadora do 'Fantástico' agredida em motel expôs machismo

Capa de revista fala sobre a tragédia envolvendo Leila Cravo - Arquivo - Arquivo
Capa de revista fala sobre a tragédia envolvendo Leila Cravo
Imagem: Arquivo

Um dos casos mais emblemáticos trazidos pelo livro é o crime contra a então celebridade em ascensão Leila Cravo, em 1975, encontrada nua e inconsciente aos pés do muro do Vip's, no Rio de Janeiro. Aos 21 anos, era apresentadora do "Fantástico" e considerada um dos talentos promissores da televisão. Até o dia em que decidiu ir ao motel com um "amigo colorido", casado.

No quarto em que estava com o amante surgiu um figurão da República, que só em 2018 ela revelou ser um ministro do governo de Ernesto Geisel (1974-1979). Ambos, segundo ela, a agrediram sexualmente e tentaram matá-la. Leila teve mais de 30 fraturas no rosto, uma lesão na coluna e perdeu o olfato, o paladar e a visão parcial do olho esquerdo.

"Depois disso, todas as portas foram fechadas para ela. Nem mesmo o movimento feminista se mobilizou para ajudá-la, porque também era moralista. Afinal, o que ela fazia em um motel?", questiona Guedes.

"Leila era um rostinho bonito que entrava na casa das pessoas, pela televisão, aos domingos, dia típico da família. Um dia foi tomar seu uísque e decidiu ir para o motel, o que muita gente fazia, mas sua história se transpôs aos muros do lugar. E isso foi imperdoável."

A autora relembra o caso de Ângela Diniz, assassinada pelo namorado, Doca Street, em 1976, e a diferença da comoção popular em torno dos crimes. No caso de Ângela, após a condenação de Doca a dois anos de prisão que na prática não precisariam ser cumpridos, movimentos de mulheres pediram um novo julgamento, que ocorreu três anos depois e chegou à pena de 15 anos de prisão.

"Ângela, ainda que quisesse viver uma vida livre, era a mulher que estava construindo a vida, não a doidinha do motel", diz. Para Melo, o espaço em que as violências aconteceram é importante na análise sobre como diferentes julgamentos recaíram sobre elas. "A primeira foi em uma casa de praia. A outra, no Vip's. Leila foi assassinada moralmente, banida da sociedade, porque frequentar aquele ambiente era imperdoável para uma mulher, mesmo que ela tenha sido uma vítima." Leila Cravo morreu em 2020, após ser levada ao hospital com dores no peito. A causa oficial do falecimento não foi divulgada.

Mas, afinal, por que a ditadura militar financiou motéis?

A ideia inicial do governo era aumentar a estrutura turística e hoteleira do país e fazer do setor uma indústria rentável. Para isso, criaram a Embratur (Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo) em 1966, e desenvolveram um programa de investimentos para que empresários brasileiros levantassem boas hospedagens o mais rápido possível.

Uma das classificações copiava o modelo americano de hotéis de beira de estrada, os motéis. Mas alguns empresários, já de olho no mercado do sexo, decidiram burlar essa classificação e criar estabelecimentos que, na prática, eram fora da zona urbana, mas com arquitetura e decoração peculiares —como as características camas redondas. Sem nenhuma fiscalização, porém, eles se espalhavam pelas cidades brasileiras.

"O governo fez vistas grossas. Continuavam investindo, mesmo sabendo do que se tratava. Frequentavam esses lugares. Coronéis chegavam a ser sócios de empreendimentos moteleiros", explica Melo.

Após o crime contra Leila Cravo tomar os jornais foi baixado um decreto proibindo incentivos fiscais para motéis em áreas urbanas. "Mas não aconteceu nada, continuou tudo do mesmo jeito. Só em 1983 é que foram tirados da classificação de 'meios de hospedagem' e, assim, perderam os investimentos federais."