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Brasil é o país que mais mata pessoas trans; 175 foram assassinadas em 2020

Manifestação em memória da trans Carol, morta no RS, em janeiro de 2020 - Reprodução/Dartanhan Figueiredo
Manifestação em memória da trans Carol, morta no RS, em janeiro de 2020 Imagem: Reprodução/Dartanhan Figueiredo

Carlos Minuano

Colaboração para Universa

29/01/2021 04h00Atualizada em 29/01/2021 10h07

O Brasil se mantém na liderança do vergonhoso ranking de países que mais matam pessoas trans no mundo. Em 2020, foram 175 travestis e mulheres transexuais assassinadas. A alta é de 41% em relação ao ano anterior, quando foram registrados 124 homicídios.

O número de assassinatos também torna 2020 o ano mais sangrento em quatro anos, desde o início desse tipo de levantamento de dados no país. Os dados são baseados em notícias veiculadas na mídia e fazem parte de um dossiê elaborado pela Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) e divulgado hoje, 29, Dia Nacional da Visibilidade Trans.

As travestis que se prostituem são a maioria entre as assassinadas, junto de negras e periféricas que enfrentaram ao longo de 2020 um acirramento da vulnerabilidade em que já se encontravam. Também chama a atenção no relatório a ausência de casos de assassinatos de homens trans.

"As travestis e mulheres trans enfrentam violências por ousarem reivindicar seu lugar de mulher", afirma a secretária de articulação política da Antra, Bruna Benevides, uma das responsáveis pelo levantamento. Para ela, a escalada da violência com esse perfil se entrelaça com o ambiente político do país. "É uma campanha de ódio que chamam de combate à ideologia de gênero."

A secretária da Antra afirma que está em curso no Brasil uma narrativa inferiorizante, que defende e incentiva a submissão da mulher ao mesmo tempo em que incita a violência, inserindo ataques a pessoas trans no cenário de aumento da violência contra a mulher no país.

"Não estamos seguras em nenhum lugar"

De acordo com o relatório da Antra, o estado com maior registro de assassinatos de mulheres trans em 2020 foi São Paulo, seguido do Ceará, Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Por região, a maior concentração de casos está no Nordeste, com 43% das mortes.

A vítima mais jovem tinha apenas 15 anos de idade; a mais velha, 29. A maioria dos assassinatos (65%) foram de travestis que trabalhavam como prostitutas, e 71% dos crimes aconteceram em locais públicos. O perfil racial das vítimas também é evidente: ao menos 78% das vítimas foram identificadas como pessoas negras (pretas e pardas).

Em metade dos casos, as mortes foram por armas de fogo, e 77% tiveram requinte de crueldade no momento do crime. Diferentemente do cenário de violência doméstica, 72% dos assassinos não tinham relação com a vítima.

Mas, Bruna ressalta que os dados não refletem a realidade que, segundo ela, é muito pior. "Não estamos seguras em nenhum lugar", desabafa. Ela critica a falta de dados governamentais e a subnotificação.

Além da violência, o relatório mostra que a pandemia da Covid-19 piorou as desigualdades. Segundo o dossiê, cerca de 70% da população de travestis e mulheres transexuais não conseguiram acesso às políticas emergenciais. O documento também ressalta uma piora na saúde mental desse grupo. "O número de suicídios aumentou", observa Bruna.

Violência virtual: redes sociais são lugar hostil

A violência das ruas também tem reflexo nas redes sociais, que se tornou um ambiente hostil e violento, diz o relatório. Cruzamentos de dados da Antra apontam ainda que o Brasil é o país que mais consome pornografia trans nas plataformas de conteúdo adulto.

É uma relação de desejo e abjeção que vem ganhando corpo, segundo Bruna. "É necessária uma discussão pública para enfrentar a violência e o racismo transfóbico na sociedade", aponta a secretária da Antra.

Ela também chama a atenção para a urgência de um debate sério sobre a necessidade de que inquéritos policiais registrem que a identidade de gênero foi determinante para o crime. "Na maioria dos casos a polícia termina a investigação dizendo que não foi crime de ódio."

Nicole Lima dos Santos - Divulgação SMDHC/Piti Reali - Divulgação SMDHC/Piti Reali
Nicole Lima dos Santos, em ensaio fotográfico Luz e Sombra, do Programa Transcidadania
Imagem: Divulgação SMDHC/Piti Reali
Maria Aline Emídio Alves - Divulgação SMDHC/Piti Reali - Divulgação SMDHC/Piti Reali
Maria Aline Emídio Alves
Imagem: Divulgação SMDHC/Piti Reali

São Paulo faz mapeamento trans

Em São Paulo, o calendário do Dia da Visibilidade Trans inclui a divulgação dos resultados da primeira fase de um mapeamento de temas que afetam a população trans na cidade. Foram ouvidas 1.788 pessoas. O levantamento foi realizado pelo programa Transcidadania da SMDHC (Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania).

"Para evolução das políticas públicas de garantia dos direitos é preciso que a gente conheça como essa população tem vivido", avalia o coordenador de políticas para LGBTI da secretaria, Mansur Bassit. Alguns pontos já eram conhecidos, segundo ele. "É uma população de baixa renda, que ganha entre meio e dois salários mínimos".

O levantamento também mostra o homem trans melhor posicionado do que a travesti e a mulher transexual. "Sofre menos agressão, tem mais emprego com carteira assinada, tem uma formação melhor."

Outro dado destacado pelo coordenador é a agressão verbal que evidencia a vulnerabilidade da população trans em sua vida cotidiana. "Sofre preconceito dentro de casa, na escola, na rua e nos banheiros."

Para celebrar o Dia da Visibilidade Trans, o Transcidadania realizou um ensaio fotográfico com 12 bolsistas do programa, dois homens e 10 mulheres trans das quatro regiões da capital. Os retratos estão serão divulgados hoje em eventos virtuais nas redes sociais e ilustram essa reportagem.

Nota da Secretaria de Segurança Pública de SP

A reportagem da Universa procurou a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo para questionar sobre os dados do dossiê, que apontam o estado no topo do ranking nacional de assassinatos de pessoas trans.

Por meio de nota, o órgão respondeu que não comenta pesquisa cuja metodologia desconhece, mas ressaltou ter intensificado as ações de combate à violência sexual e de gênero.

"Além da especializada Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), todos os distritos policiais são aptos a registrar e investigar crimes contra vítimas LGBTIs, de acordo com as normas jurídicas vigentes no país."
Segundo a SSP, desde novembro de 2015, é possível incluir o nome social e a indicação de "homofobia ou transfobia" no registro da ocorrência.

"Após o decreto 65.127/2020 estabelecer mudanças no atendimento das DDMs [Delegacias de Defesa da Mulher] em 2020, as vítimas são acolhidas por gênero feminino, não mais sexo biológico, estimulando as mulheres cis, trans e travestis vítimas de violência doméstica a também procurarem as DDMs."

Outra medida que a SSP ressaltou na nota foi o aumento da carga horária de matérias relacionadas aos direitos humanos em cursos ministrados nas academias de polícia e de projetos de capacitação de seus policiais.

Raquely Dias Sampaio do Nascimento - Divulgação SMDHC/Piti Reali - Divulgação SMDHC/Piti Reali
Raquely Dias Sampaio do Nascimento
Imagem: Divulgação SMDHC/Piti Reali
Claudio Galícia - Divulgação SMDHC/Piti Reali - Divulgação SMDHC/Piti Reali
Claudio Galícia
Imagem: Divulgação SMDHC/Piti Reali