'A gente não é macho, é boyceta': termo não é novo e nasceu na periferia
O rapper Jupi77er não esperava que sua vida viraria do avesso ao participar de um podcast no final de maio. Ao falar sobre sua identidade de gênero como boyceta, ele virou alvo de discursos de ódio e viu seu rosto estampado em perfis de representantes da extrema direita.
O que aconteceu
O rapper concedeu uma entrevista ao podcast "Entre Amigues", e uma das várias pautas discutidas por ele foi sobre sua identidade de gênero. "Eu sou uma pessoa transmasculina, mas a minha identidade de gênero é boyceta. Só que eu sou uma pessoa de gênero fluído também (qualquer pessoa que não tem gênero fixo, ou seja, que transite entre um ou mais gêneros) ", começou Jupi77er.
Entendo as nuances do meu gênero e para onde ele vai, para onde ele caminha. Ser boyceta me dá muita liberdade de ser gênero fluído, de expressar minha feminilidade quando eu quero, de ter essa identidade 'meio bicha' assim, que eu acho muito bom e bonito. [...] E não é nem que eu quero, meu gênero flui simplesmente, conta o rapper.
O trecho da entrevista chegou até ao deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), que publicou em suas redes o vídeo com a seguinte legenda: "É melhor não". Na edição do vídeo, o político ainda aparece afirmando que "não tem mais dinheiro para pagar advogado", dando a entender que sua opinião geraria uma ação judicial.
Desde então, o vídeo viralizou em perfis conservadores, sempre repleto de comentários transfóbicos. Em suas redes sociais, Jupi77er também passou a receber ataques criminosos. Durante entrevista a Universa, o artista revelou que jamais pensou ver suas falas ganharem essa repercussão.
Eu estava em um ambiente seguro. Jamais falaria da minha identidade com tanta leveza se eu não estivesse em um espaço seguro, se eu soubesse que iria ser alvo do Nikolas Ferreira e do Nego Di, por exemplo.
Jupi77er
O que é boyceta?
O termo boyceta teria surgido oficialmente em 2020, mas veio de processos mais antigos de autorreconhecimento. A autoria da concepção da identidade de gênero é dada a Roberto Chaska Inácio, um boyceta indígena e PCD ligado à cena rap paulistana — o nascimento do termo, inclusive, acontece na Batalha Dominação, um evento de freestyle protagonizado por mulheres e pessoas trans, que ocorre no centro da capital paulista. Roberto morreu em dezembro de 2022.
Em termos gerais, boyceta é uma identidade não binária. Nela, estão pessoas que foram designadas como do sexo feminino ao nascimento, mas se identificam com o gênero masculino, sem necessariamente se considerarem homens trans. "É nessa identidade que eu me sinto bem para expressar também a minha feminilidade, porque eu não me sinto restrito à masculinidade. O binarismo de gênero não faz sentido para mim, eu estou justamente rompendo essa norma", explica Jupi77er.
Comecei o uso do termo com a ideia de não aversão à genital e o medo de que nossa genital nos tornassem menos homens. Eu falava sobre dar! Sim, dar! E que isso não afetava nossa masculinidade. Ser boyceta também me significava tentar ser o menos "macho" possível. Boyceta é sobre minha feminilidade. [...] Nunca foi só sobre genital, nem sobre binaridade ou não binaridade. Boyceta reflete toda minha vida, minha vivência. Esse termo me trouxe conforto com meu corpo e mente, me fez me aceitar melhor. Me trouxe ao mundo.
Roberto Chaska Inácio, em texto publicado sobre a identidade de gênero
Boyceta e a cultura periférica são indissociáveis. Nascida em meio às batalhas de rap, a identidade é muito característica das vivências de pessoas marginalizadas tanto quanto ao seu gênero, quanto à sua cultura. "É um termo que nasceu na rua", define Jupi77er.
Para explicar boyceta, muitas vezes é feito um paralelo com a identidade travesti. O pesquisador Guilherme Calixto Vicente, mestrando em Antropologia pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), que se define como boyceta, escreve que ambas as identidades são focadas na fuga do binarismo de gênero e na autodeclaração.
Da mesma forma como a travestilidade foi construída como uma possibilidade de gênero à parte, para além do 'ser homem' e do 'ser mulher', a construção de 'boyceta' vem se mostrando também enquanto um gênero próprio (muitas pessoas, inclusive, se valem deste paralelismo entre travesti e boyceta para explicar a nova identidade). A diferença entre boyceta e homem trans, tal qual travesti e mulher trans, é de autodeclaração.
Guilherme Calixto Vicente
Em entrevista a Universa, no entanto, o pesquisador alerta para a necessidade de tratar boyceta como uma identidade com definições próprias. "Essa é uma comparação inicial, que facilita um pouco a explicação. Mas eu entendo que são outros processos históricos, são outros sujeitos históricos. É importante a gente partir das nossas experiências e da nossa história para falar sobre nós, sobre a nossa cultura", explica.
Veronyka Gimenes, apresentadora do "Entre Amigues", concorda com o paralelo. "Quando eu me anuncio travesti entre as minhas amizades, que são LGBT, da rua, etc., não tem nenhuma novidade. Agora, quando isso chega, por exemplo, à família, círculos que são de outra classe social, a palavra travesti tem outra conotação, é quase criminosa. Travesti está, hoje, limpo para uma galera, mas está ainda totalmente queimado", ilustra, ao falar sobre a visão da sociedade sobre pessoas com identidades que fogem da cisgeneridade.
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Quero receberApesar do nome, a identidade boyceta não reduz as pessoas à sua genitália. Guilherme, que também é membro do IBRAT (Instituto Brasileiro de Transmasculinidades), explica que, como uma identidade trans, não há como boyceta ser um termo genitalista. "O genitalismo é uma lógica cisgênera, porque ele parte do pressuposto de um 'certo'. Quando a gente muda essa lógica — porque não estamos seguindo essa regra cis, em que somos mulheres —, a gente tá contrariando, subvertendo tudo isso e reivindicando os outros lugares", defende.
Acham que pessoas masculinas -- boycetas, homens trans -- têm privilégio masculino. Eu gosto muito de boyceta porque quebra com isso. A gente começa a falar sobre o quanto a gente não só não tem os mesmos poderes políticos, econômicos e simbólicos de homens cisgêneros, como também não tem esses mesmos poderes de mulheres cis, como atendimentos de saúde, direitos trabalhistas, como licença maternidade, e outros benefícios que não conseguimos acessar.
Guilherme Calixto Vicente
Medidas jurídicas
Após a enxurrada de ataques preconceituosos, Jupi77er conta com a ajuda da amiga e advogada Amanda Claro, que também apresenta o 'Entre Amigues', para tomar as medidas judiciais cabíveis. A profissional, inclusive, já tem experiência nesse tipo de caso, tendo atuado ao lado de Érika Hilton (PSOL-SP) na época da campanha da agora deputada federal para vereadora, em 2020.
A gente já mobilizou nossas redes, a gente já mobilizou o Ministério de Direitos Humanos, e está se organizando para tomar as medidas que são necessárias para a responsabilização civil e criminal das pessoas que cometeram os crimes e difamaram e injuriaram o Jupi77er.
Amanda também explicou que a onda de ódio atingiu outras pessoas que nada tinham a ver com a história. "Foi uma coisa que foi se espalhando. O ódio chegou na nossa página, no nosso perfil do 'Entre Amigues', e foi se espalhando também para os outros cortes, das outras entrevistas com outras pessoas", conta.
Outros convidados do podcast também começaram a receber [ataques]. A gente via que a pessoa primeiro comentava no vídeo do Jupi77er, aí depois vinha e comentava no vídeo de outra pessoa. A gente tá se organizando aqui, sim, para tomar as medidas que são necessárias para coibir isso e buscar a responsabilização das pessoas.
Amanda Claro
Não entendeu algum termo? A gente explica:
- Binarismo de gênero: crença de que existem apenas os gêneros masculino e feminino, com características e papéis específicos;
- Transmasculino: pessoas cujas identidades de gênero são masculinas, mas que não necessariamente se consideram homens;
- Gênero fluído: pessoas que não se identificam com um único papel de gênero ou identidade de gênero, fluindo entre vários;
- Genitalismo: redução da identidade de gênero às genitais com as quais uma pessoa nasceu;
- Cisgênero/cisgeneridade: pessoa cuja identidade de gênero corresponde ao gênero que lhe foi atribuído no nascimento
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