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Quem é o médico que desafia sociedade e religião por aborto seguro em PE

O médico obstetra Olímpio Moraes, em frente ao Cisam, hospital de referência ao aborto legal no Recife -
O médico obstetra Olímpio Moraes, em frente ao Cisam, hospital de referência ao aborto legal no Recife

Carlos Madeiro

Colaboração para Universa

20/08/2020 04h00

"Um dos médicos mais ricos de Pernambuco —e que por sinal é muito católico— faz aborto por R$ 3.000 com aspiração em seu consultório, e toda sociedade sabe. E ninguém vai prendê-lo porque ele atende as amantes de deputados, de senadores, de suas filhas e da população que tem dinheiro. Se atendesse mulheres pobres, estaria preso."

A fala, dita em 24 de setembro de 2015 e seguida de um efusivo aplauso de mulheres no auditório do Senado Federal, é do médico obstetra Olímpio Moraes, diretor do Cisam (Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros). Seu discurso foi recuperado esta semana após ele voltar aos holofotes por aceitar realizar o aborto legal de uma criança de 10 anos submetida a abuso sexual recorrente no Espírito Santo.

A Universa, o pernambucano Olímpio lembrou que esteve no Senado em uma audiência para debater mudanças na Lei do Aborto como vice-presidente da Comissão de Abortamento, Parto e Puerpério da Febrasgo (Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia). "É muita hipocrisia, não acho que mudou nada de lá para cá: continuam as mentiras", conta.

As imagens com audiência rodaram as redes sociais esta semana e reafirmam algo que marcou sua carreira como médico: a luta pelo direito ao aborto legal e seguro para mães pobres, o que desafia setores conservadores da sociedade e religiosos.

"Naquele momento, no Senado, estavam dizendo que os médicos queriam mudar a lei para ganhar dinheiro; e eu expliquei que é na ilegalidade que muita gente ganha dinheiro. A burguesia tem acesso a um aborto seguro, vai a um médico que conhece. A legalização mudaria essa realidade. Quem sofre hoje são as meninas pobres", diz.

A história de Olímpio na defesa da causa é antiga. Médico há 34 anos, ele está há 31 no Cisam e hoje é diretor da maior maternidade pública do Recife, ligada à UPE (Universidade de Pernambuco).

11 anos de polêmica

Em 2009, atuando pelo Cisam, ele participou de outro caso famoso de interrupção de gravidez, dessa vez de um menina de 9 anos que carregava gêmeos fruto de estupro do padrasto. Assim como nesta semana, o caso provocou críticas e protestos de religiosos —e levou a equipe médica a ser excomungada pela Igreja Católica.

Olímpio se diz agnóstico, não crê em vida eterna, mas diz que é "fã da história de Jesus Cristo". "Sou o chamado católico não praticante", afirma.

Ele reclama, porém, que há uma invasão da religião em assuntos que deveriam ser restritos à saúde pública. Para ele, grupos políticos hoje usam a religião para proliferar ódio. Mas ele garante que esse ódio é seletivo.

"Quando pessoas religiosas têm contato com um caso, quebram sigilo, e as pessoas ficam sabendo, como foi em 2009. Geralmente são pessoas muito humildes, como essa menina do Espírito Santo. Com gente rica não acontece", diz, fazendo um paralelo com o caso desta semana.

Se uma criança de classe alta no Espírito Santo que fosse violentada aos 10 anos ninguém ficaria sabendo: a menina seria preservada e tudo seria resolvido 'em casa.' Mas quando a pessoa é pobre, essas pessoas tentam se aproximar e se promover politicamente promovendo ódios. É isso que dá a repercussão. Se não houvesse essas forças, ninguém estava discutindo isso Olímpio Moraes

O médico afirma que do caso em 2009 até hoje, o comportamento das mulheres progrediu com o acesso a mais informações. "As mulheres hoje estão mais sabidas. Elas hoje sabem mais usar medicamentos, sabem que a grande saída é desistir [da gravidez] logo. E existe uma rede grande das mulheres. A informação salva vidas", diz.

hospital - Divulgação - Divulgação
Cisam, hospital referência em aborto legal em Recife
Imagem: Divulgação

Sem medo de enfrentar as críticas

Quando recebeu a ligação da Secretaria de Saúde do Espírito Santo, no sábado passado, Olímpio diz que não levou em conta decisão judicial para aceitar receber a criança de 10 anos e realizar o aborto.

"Eu não tive ordem judicial. Foi realizado o procedimento porque, passadas 22 semanas, os médicos de lá não teriam como fazer, e eu não iria fazer mais essa maldade com ela [a criança]", aponta.

Ele diz que sentiu profunda tristeza ao saber do vazamento dos dados da menina —o procedimento deveria ser todo sigiloso. "Divulgar esses dados é tão grave como o estupro. O estuprador destruiu a vida dela até os 10 anos. A gente quer que ela renasça e comece a viver, e essas pessoas querem destruir daquele momento em diante. São pessoas que deviam fazer partido político com o estuprador, são todos parecidos", aponta.

Por semana, diz, pelo menos um procedimento similar é realizado na maternidade. Em outubro de 2015, ele chegou a dizer em outra audiência, na Câmara, que não era a favor do aborto, mas a favor da não criminalização.

Ninguém é a favor do aborto. Quando se pergunta: Você é a favor ou contra? Eu sou contra! Olímpio Moraes

"Agora, quando perguntam para mim: 'Dr. Olímpio, a maneira de resolver o problema do aborto é colocando, ou tentando colocar, a mulher na prisão?' Como eu vou responder isso, se no mundo todo se diz que não é desse jeito? É uma hipocrisia nossa acreditar", afirmou.

A postura de Olímpio é reconhecida por mulheres e entidades que defendem os direitos femininos em Pernambuco.

"O papel do Olímpio é muito importante porque, além de defender o direito das mulheres, crianças e adolescentes a esse serviço pelo SUS [Sistema Único de Saúde] com qualidade, ele é professor e está formando novos médicos", diz a enfermeira Paula Viana, coordenadora do Grupo Curumim, que acompanhou as crianças que passaram por aborto na maternidade em 2009 e 2020.

balões no hospital - Carlos Ezequiel Vannoni/Estadão Conteúdo - Carlos Ezequiel Vannoni/Estadão Conteúdo
Grades do hospital ganharam balões em apoio ao corpo clínico após atendimento de menina de 10 anos
Imagem: Carlos Ezequiel Vannoni/Estadão Conteúdo

Cisam faz 30 mil atendimentos por mês

Junto com Olímpio, o Cisam tem uma história importante no oferecimento de aborto legal em Pernambuco —que o levou a ser escolhido por autoridades do Espírito Santo para receber a garota.

Popularmente conhecida como Maternidade da Encruzilhada, ele está em atividade desde 1947 e realiza, por mês, 30 mil atendimentos — 2.000 deles de urgência e 400 partos.

O hospital faz parte do Complexo Hospitalar da UPE e oferece serviços de ambulatório, pediatria e ginecologia. Em 1996, tornou-se referência na assistência à mulher e adolescente em situação de violência sexual e doméstica incluindo o aborto legal, por meio do serviço Pró-Marias.

"O Cisam tem uma longa história no Recife. Foi ele quem fez o primeiro aborto previsto em lei aqui. E antes dele só teve esse procedimento em um outro hospital, em São Paulo, com Luiza Erundina no governo [da prefeitura]. O segundo foi aqui, e sempre foi um serviço de excelência", conta a pesquisadora na área de saúde em Pernambuco, Carmelita Maia. Universa questionou o orçamento anual da unidade, mas a UPE não respondeu, se limitando a informar que ela é "100% financiada pelo SUS".