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Mês do Orgulho LGBTQ+

Em A Dona do Pedaço, Britney não conta ao crush que é trans. Precisa falar?

Glamour Garcia (Britney, de "A Dona do Pedaço"): a personagem omite o fato de ser trans - João Miguel Júnior/Rede Globo/Divulgação
Glamour Garcia (Britney, de "A Dona do Pedaço"): a personagem omite o fato de ser trans Imagem: João Miguel Júnior/Rede Globo/Divulgação

Luiza Souto

Da Universa

18/06/2019 04h00

O português Abel (Pedro Carvalho) parece ser o único da novela global "A Dona do Pedaço" a não saber que Britney (Glamour Garcia), a jovem por quem ele está apaixonado, é transexual. Ela também não contou. Os dois ainda estão se conhecendo. Mas ela teria alguma obrigação de falar isso? Perguntamos para pessoas trans e profissionais de psicologia.

Na opinião da youtuber transexual Thiessa Woinbackk, de 29 anos, não há necessidade mesmo da personagem falar sobre sua intimidade no comecinho da paquera. Enquanto o psiquiatra Daniel Mori, do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria da USP (Universidade de São Paulo), atenta: a pessoa trans deve, antes de mais nada, se sentir segura para contar.

A discussão sobre falar ou não, e qual a hora certa para fazê-lo, é polêmica, sem garantia de que todos os envolvidos vão compreender a situação. Tanto que Thiessa faz questão de repetir a frase "na minha experiência pessoal" antes de cada resposta, tamanha complexidade. Ela se reconheceu trans aos 18 e passou pela redesignação sexual, popularmente -- e erroneamente -- conhecida como "cirurgia de mudança de sexo".

Thiessa diz que não contava de primeira sobre todo o seu processo para os homens que conhecia. Esperava o momento em que percebia que a relação estava ficando mais séria. "E aí é do feeling. Quando eu me via com a vontade de contar, esperava a pessoa conhecer meu caráter para ver se isso era motivo para querer ficar ou não", indica ela.

As reações foram as mais diversas. Teve um, por exemplo, que a bloqueou nos aplicativos de conversa por celular assim que ficou sabendo, mesmo após ter ficado com ela por algumas semanas. Outros acusaram-na de tê-los enganado. Ou aceitaram, mas quando os amigos descobriram, pularam fora.

"Acho que as pessoas têm o direito de saber sobre isso, porque realmente podem se sentir enganadas, mas é uma situação chata e dolorosa. O que deveria importar é o caráter e a personalidade", opina Thiessa, para em seguida entregar: já ficou com alguns homens sem contar ser trans.

"A mulher não fala que é cis numa balada, por exemplo, então também não preciso fazer isso. Sou mulher e ponto. Mas se vejo que a relação saiu do casual, aí já conto porque não quero problema pra minha cabeça".

É transfobia?

A preocupação em contar a verdade para o parceiro deve se estender à segurança também. Thiessa lembra que quase foi agredida quando falou a verdade para uma pessoa. Mas prevendo o que poderia ocorrer, pediu para os amigos ficarem por perto:

"Sempre tive muito medo disso, porque a gente nunca sabe a reação. Nunca gostei de contar pessoalmente. Era sempre por mensagem de texto, mas desta vez foi pessoalmente. E é estranho porque às vezes a pessoa diz que gosta de você, mas quando você conta um detalhe da sua vida, muda totalmente. Se gosta, tem que bancar a situação".

Mas e sobre a escolha do outro em querer ou não passar por uma situação como essa? Seria transfobia da pessoa cis não aceitar o relacionamento após a descoberta?

"Depende da forma como você vai lidar. Se você gosta da pessoa mas não quer nada com ela por causa do órgão, é seu direito, mas saiba que você está resumindo aquela pessoa ao órgão dela. Isso é transfobia. É uma linha tênue entre a minha vontade e a transfobia. Mas tudo bem se não quiser se relacionar. Cada pessoa tem seu limite. Vale analisar o quanto gosta da pessoa", ela analisa.

O carinha que a bloqueou nas redes a procurou um ano após o episódio. Pediu perdão e os dois transaram: "Ele veio me falar que se arrependeu muito, e provei que não fazia diferença".

Hoje, Thiessa mora com o namorado, o designer Alocard Araújo, de 21 anos. Ele já conhecia sua história antes de começar a segui-la nas redes, então "foi tranquilo". A sogra, diz ela, jogou seu nome no Google quando o filho anunciou o namoro e descobriu tudo.

O que ela fez? Pesquisou sobre o tema, tirou dúvidas com uma amiga médica e recebeu a nora de braços abertos, como deveria ser. O casal ainda não pensa em ter filhos mas, se isso acontecer, vão entrar num acordo, como acontece num relacionamento saudável.

"Eu e a Thiessa somos muito companheiros. Com o tempo fui conhecendo o quanto ela é incrível, e não são detalhes do seu passado que me importam, e sim o que estamos construindo juntos agora", afirma Araújo.

Não há regra

O psiquiatra Daniel Mori costuma receber esse tipo de questão dos jovens atendidos no Amtigos (Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual), da USP. E decreta: a regra é que não tem regra.

"Cada relação tem sua história, que passa pelo respeito e compromisso com o outro. A identidade de gênero da pessoa é só dela, e ela deve abrir para a outra no momento em que se sentir à vontade. Mas se não quiser falar também, não tem essa obrigação", defende o profissional, para continuar: "Quando o processo de contar é bem pensado e planejado, e existe a confiança do outro, isso reduz também o risco de a pessoa trans sofrer alguma violência".

Mori ensina ainda que vale também o casal procurar, junto, ajuda profissional para tirar todas as dúvidas acerca do tema.

"É comum que as pessoas trans levem seus parceiros, cis ou trans, para que juntos participem do nosso acompanhamento. Vale a pena procurar um profissional ou organizações que atendem a esse público".

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