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Ela perdeu marido e filho assassinados e hoje muda a vida de jovens em SP

Neide do Capão, fundadora do projeto Vida Corrida - Arquivo Pessoal
Neide do Capão, fundadora do projeto Vida Corrida Imagem: Arquivo Pessoal

Priscila Gomes

Colaboração para Universa

15/05/2019 04h00

Pouco antes da 7h, várias mães entram no Parque Santos Dias, no Capão Redondo, de mãos dadas com seus filhos. Eles usam bermuda, regata e tênis. Pegam uma fila para dar o nome na lista de presença para uma senhora que cumprimenta todas com abraços e beijos demorados. Crianças para um lado e mulheres para o outro: é o início dos treinos de atletismo, corrida e funcional. Isso tudo acontece as segundas, quartas e sextas, três vezes ao dia. A atividade é possível pelo Projeto Vida Corrida, comandado por Marineide Santos Silva, há 20 anos.

Neide, 59, nasceu, em Porto Seguro, na Bahia, e veio para São Paulo, ainda criança, com uma família que a adotou. "Logo que cheguei já fui trabalhar em uma oficina de costura, tinha 6 anos. Sofri todos os tipos de abuso. Só fui registrada pela minha mãe biológica aos 11 anos. Ela enviou meu registro para que minha tia adotiva pudesse me matricular na escola de 1971 a 1976". Em 1977, Neide foi morar na zona Sul.

Aos 14 anos, durante a aula de educação física na escola, Neide foi chamada para participar de uma prova de revezamento porque a titular tinha faltado. "Como eu era magrinha, o professor disse que não iria ser tão difícil para mim. Gostei tanto que cheguei em primeiro lugar e não parei mais. Eu comecei a sonhar em ser atleta", revela emocionada.

Superação e nascimento do projeto

Aos 17 anos, Neide estava grávida e casada. Quando seu filho tinha apenas 4 meses, seu marido, negro, foi morto por um policial militar. Como uma forma de superação, ela continuou correndo pelo bairro. "Eu ouvia mulheres comentando: nossa, se ela corre, eu também posso. E uma ia chamando a outra".

E a pior dor de sua vida ainda estava por vir. Seu filho mais velho Mark, foi morto aos 21 anos por um adolescente de 14. "Eu me perguntava por que comigo, eu que sempre estendi a mão para essa comunidade e fazem isso comigo".

Antes de morrer, o filho de Neide sempre falava que a mãe tinha que trabalhar com crianças e adolescentes também. "Eu falava para ele que eu não tinha tempo e não tinha mesmo. Depois da tragédia, eu pensei que mudar a vida de crianças era o meu objetivo. Se eu conseguisse, já estaria feliz. E com o nascimento do projeto "Vida Corrida" foi transformando a vida de uma, duas, três crianças... hoje é incontável. A igualdade social poderia ser para todo mundo", diz emocionada.

Nas Olimpíadas de 2016, em julho, Neide foi convidada pelo Comitê Olímpico Brasileiro para participar do revezamento da Tocha Olímpica. "Eu sonhava em ser uma medalhista olímpica, mas não tive suporte. Meu sonho se realizou quando vi a Olimpíada no meu país e ainda conduzi a tocha olímpica." Ela fez questão de convidar cerca de 150 crianças que participavam do projeto para correrem ao lado dela durante todo trajeto.

Amizades antigas e crianças do projeto

Verinalda Fonseca da Silva e o filho João Victor - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Verinalda Fonseca da Silva e o filho, João Victor
Imagem: Arquivo Pessoal

Quando tudo isso era apenas um grupo de amigas correndo no parque, Verinalda Fonseca da Silva, 47, já estava lá com a Neide. "Ela que me chamou para correr em 2003 e já éramos um grupo grande de mulheres. Somos amigas até hoje. Parei de participar por um tempo, tive filhos. Voltei e trago meu filho. É maravilhoso fazer o que gosta, aqui posso praticar o atletismo", comenta a moradora do Jardim Imbé, que trabalha de empregada doméstica e pratica a atividade pela manhã antes de ir ao trabalho.

João Victor, 10, filho de Verinalda, pratica com outros garotos da idade dele. "Gosto de vir aqui, depois que comecei a correr, aprendi a controlar minha ansiedade, ter mais energia e disposição. Gosto de acordar cedo para vir aqui, estar com amigos. Melhorei até nos estudos também", comenta.

Maria de Fátima Portela do Nascimento, 59, uma das frequentadoras mais antigas do projeto, que faz parte da diretoria corre com a Neide e as amigas há 17 anos. A empregada doméstica, conhecida como Portela, diz não saber contar quantas amigas fez. "Comecei a vir nesse parque porque estava acima do peso. Logo, outras mulheres que corriam me convidaram para participar do grupo delas e da Neide. Minha vida mudou em tudo: na perda de peso, energia, novas amizades e hoje corro até 20km. Sou o orgulho da família", conta a moradora do Parque Fernanda, que tem quatro filhos, cinco netos e um bisneto.

Outra participante caminhava sozinha e depois do projeto começou a trazer a filha e ainda fazer outras atividades. "Um dia, vi umas mães correndo com os filhos, achei muito interessante e quis participar. Há um ano e meio estou aqui com a minha filha e sobrinha e elas amam correr e fazer exercícios, faz bem para todo mundo", conta Iraciara Prado Baptista, 44, técnica de enfermagem, moradora do Parque do Engenho.

A filha de Iraciara comenta o motivo que a leva ao parque: "Em vez de ficar em casa assistindo TV, eu acho mais divertido vir para cá fazer atividade, brincar. E o mais legal é que conheço todas as crianças daqui porque estudam na minha escola", diz Luana Baptista, 9.

Maria do Amparo e o filho Mikon - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Maria do Amparo com seu filho Mikon
Imagem: Arquivo Pessoal

"O Mikon brigava muito com outros garotos, não se comportava. Tirei ele daqui. Logo, ele sentiu falta e pediu para voltar. Eu larguei o trabalho para acompanhá-lo nas atividades que ele faz aqui e em outros lugares. O comportamento dele mudou completamente. A minha busca é diária para mudar a vida dele", conta Maria do Amparo Teixeira Paz, 42, empregada doméstica, mãe de Mikon Rodrigo Teixeira Cabral, 7.

Futuro

Há 4 anos, Neide não trabalha mais na costura. Desde então, tem como renda as palestras que ministra em vários locais sobre seu projeto. Ela voltou a estudar agora aos 59 anos. "Estudo no Cieja - Centros Integrados de Educação de Jovens e Adultos - programa da prefeitura que oferece aulas para alunos a partir dos 15 anos de idade e que não tiveram acesso ou não concluíram o Ensino Fundamental (1º ou 9º) na idade convencional. Hoje conheço várias mulheres que depois que me viram indo para a escola, voltaram também. O exemplo é contagioso. Penso em fazer faculdade sim, talvez direito ou políticas públicas", planeja.

Vida corrida - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
"Essa mesma comunidade que tirou a vida do meu marido e do meu filho me deu esse monte de filho", diz Neide sobre o projeto
Imagem: Arquivo Pessoal

"Essa mesma comunidade que tirou a vida do meu marido e depois tirou a vida do meu filho, o meu bem mais precioso, me deu esse monte de filho. Eu estou preparando outras mulheres porque quando eu não tiver mais aqui, o Vida Corrida vai continuar. Já plantei a semente.