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"Escolhi me prostituir": por que é comum traficada não se ver como vítima?

Muitas mulheres vítimas de tráfico não se reconhecem nesta condição - Getty Images/iStockphoto
Muitas mulheres vítimas de tráfico não se reconhecem nesta condição Imagem: Getty Images/iStockphoto

Luiza Souto

Da Universa

30/11/2018 04h00

A carioca Wanessa  Ferreira, 36, apaixonou-se por um suíço há dois anos, saiu com a roupa do corpo da favela onde morava, no Rio de Janeiro, e deixou as duas filhas com a família, achando que o casamento dos sonhos traria uma oportunidade melhor para todos. Foi largada num porão, teve o passaporte apreendido, foi agredida pelo gringo e acabou na prostituição para pagar as contas da casa. Considerada vítima de tráfico para fins de casamento servil, no entanto, culpa-se por tudo. Nas palavras dela, foi sua escolha viajar.

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O Itamaraty informa que são poucas as mulheres que se veem na condição de vítimas de tráfico, explicação parecida com a do Projeto Resgate Brasil, ONG que atende essas mulheres e que trouxe Wanessa para o Brasil no início de novembro. Ela conta sua história à Universa.

“Uma amiga que mora na Suíça me mandou contato de um cara que queria conhecer uma brasileira. Eu tinha acabado de perder minha mãe. Passei a falar com ele com ajuda de um tradutor, porque não entendia uma palavra em alemão.

Eu realmente me apaixonei. Ele escreveu um monte de coisa, que gostaria de me conhecer, que eu sou linda. Estava radiante, e achei ele um homem incrível. Deixei duas filhas aqui para casar na Suíça, e só comentei com elas e meu irmão, para não despertar invejas, até porque não sabia se ia dar certo.

Casei de preto. Ele não comprou para mim nenhum vestido. Meu passeio com ele era uma ida ao mercado aos sábados. Fazia tudo em casa e não podia nem pegar o que eu queria. Ele controlava tudo que eu comia, me dava quatro ovos por semana, queijo, nenhuma carne. 

Assim que cheguei, ele insistiu para que eu trabalhasse, para ajudar nas contas. Ele morava com três filhos. Mas eu não sabia falar alemão e pedi que ele me ajudasse, o que não aconteceu. Fui fazer faxina num clube, mas fui demitida em seis meses. E, quando chegava em casa, ainda lavava e cozinhava para quatro homens.

Com a justificativa de dar privacidade aos filhos, ele me colocou para dormir num porão. No inverno, fez tanto frio que dormia de calça jeans e ligava o forno para me aquecer. Ele trancava a porta para eu não ter acesso à casa. Não tinha banheiro e eu fazia xixi no balde. Até meu banho ele passou a controlar, pois dizia que eu estava gastando muita água.

Vim para o Brasil algumas vezes com o objetivo de me separar, mas ele me escrevia dizendo que estava com saudade e eu voltava com a esperança de que ele mudaria. Ficávamos em lua de mel por um tempo, mas depois dobrava a ruindade. Por isso não me considero vítima, porque acreditei tudo. Eu não tive amor-próprio. Não tinha dinheiro, minhas filhas precisando das coisas, e ele me deu esperança. Como pode uma mulher velha acreditar num homem desse? Achei que tinha ganhado uma oportunidade incrível.

A pressão para pagar as contas em casa era tanta que fui trabalhar na prostituição. Eu que escolhi isso. Ficava no clube de segunda a sábado. Ganhava 100 francos (cerca de R$ 400) por um programa de 20 minutos, mas metade era da casa. Foi a primeira vez na vida que me prostituí.

Ele me agrediu duas vezes. Denunciei na polícia, mas nada fizeram. Na primeira, em fevereiro deste ano, fui para uma casa de proteção à mulher. Ele tentou me enforcar, mas eu mesma senti saudade, escrevi para ele e voltamos. Estava com medo, me sentindo insegura.

Em outubro, quando falei que ia voltar para casa, ele pegou meu passaporte e falou que eu tinha que pagar 900 francos (cerca R$ 3,5 mil) para o divórcio. Encontrei um advogado e ele me ajudou a voltar para o Brasil.

Eu só queria trabalhar e aprender o alemão. Queria esse relacionamento, e me pergunto qual era a intenção dele. Que eu trabalhasse para ele? Era só ter falado. O combinado não sai caro. Sinto ódio de mim por ter confiado, entrado nesse jogo sujo.

Minhas filhas, de 19 e 20 anos, que me dão força. Como posso ter caído nessa? Mas em favela isso acontece muito, pela vida que levamos, porque temos sonhos".

Trabalho escravo

Conforme o Protocolo de Palermo, documento que trata do tráfico de pessoas, vítimas seduzidas por uma boa oportunidade como um casamento, e que depois de saírem de casa são enganadas, se encaixam neste tipo de crime. Quem resgatou Wanessa foi o secretário- executivo do Projeto Resgate no Brasil, Marco Aurélio de Souza. A ONG tem um escritório na Suíça.

“Ela foi seduzida pela ideia de uma vida nova e praticamente virou escrava. Nós conseguimos um documento para ela viajar. O problema é que a maioria das vítimas não reconhece o abuso, o crime, muitas porque acreditam que estão vivendo melhor do que antes, apesar da situação”, explica Souza. Ele ficou sabendo do caso de Wanessa quando ela chegou numa casa de acolhida, em Zurique. 

O suíço, explica Souza, não está sendo investigado porque não houve denúncia de tráfico, já que ele casou-se com Wanessa. Quanto às agressões, ele afirma, a polícia não acreditou na história da vítima.

"Pouco interesse em serem resgatadas"

Estatísticas da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) apontam que em 2016 foram atendidos 317 casos de tráfico, sendo 20% internacional (cerca de 60 mulheres). Ano passado, esse número caiu para 209 (40 casos de tráfico internacional). No primeiro semestre de 2018, foram 72 (14 casos de tráfico internacional).

Segundo o Ministério das Relações Exteriores, os números não condizem com a realidade, porque trata-se de um crime subnotificado, e poucas vítimas demonstram interesse em serem resgatadas --pois, apesar das dificuldades, ainda consideram uma oportunidade melhor viver fora do Brasil. 

Quando são exploradas para fins sexuais, pagam suas dívidas e seguem na prostituição. Quem explica os motivos é a Diretora do Departamento Consular de Brasileiros no Exterior, embaixadora Maria Luiza Ribeiro Lopes da Silva.

“São poucas as vítimas que pedem para serem resgatadas, seja por medo das ameaças ou porque acreditam que sairão da condição em que se encontram. Em vários países, as vítimas nos disseram que quando estão nas mãos de um cafetão, pagam a taxa que eles impõem mas decidem continuar porque estão ganhando em euro. É o raciocínio econômico, motivado por planejamento de vida”.

A embaixadora frisa, no entanto, que cada uma tem sua história, e muitas envoltas de vergonha pela situação. Segundo ela, geralmente, as vítimas procuram as representações oficiais do país pelo mundo (só de embaixadas são 139) após casos de violência doméstica. Neste momento, os agentes mostram às vítimas locais pelo mundo onde elas possam estudar e se profissionalizar, além de ensinar todos os passos para abrir um negócio.

“A gente se deu conta de que o problema é mais de base. Não adianta só resgatar a vítima, mas dar uma alternativa para essas mulheres sobreviverem”.