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Me trataram como animal: parto com pontos necrosados e bolsa de ileostomia

A empresária Saionara Athayde fez uma ileostomia após sofrer violência obstétrica - Arquivo pessoal
A empresária Saionara Athayde fez uma ileostomia após sofrer violência obstétrica Imagem: Arquivo pessoal

Luiza Souto

Da Universa

08/11/2018 04h00

Após passar por violência obstétrica durante o parto normal do primeiro filho, há três anos, a empresária catarinense Saionara Angioletti Athayde precisou colocar uma bolsa de ileostomia, instalada perto do umbigo. Durante o parto, os médicos, segundo ela, fizeram manobras com muita força, feriram seu útero, fizeram uma episiotomia (o corte entre a vagina e o ânus para facilitar o parto) grande demais e, por fim, deram-lhe pontos que necrosaram, causando complicações que chegaram aos intestinos. E o quadro foi ainda pior: Saionara, que à época, pesava 140 quilos, afirma ter sofrido agressões por gordofobia durante a cirurgia. 

O drama da empresária passa por ainda outros episódios: para que pudesse retirar a bolsa, ela foi orientada por um médico a perder peso. Para isso, submeteu-se a uma cirurgia bariátrica. Depois disso, e prestes a fazer a retirada, engravidou novamente. Saionara, que, até hoje, três anos depois desses acontecimentos, ainda carrega a bolsa de fezes, conta à Universa o que viveu.

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"Aos 19 anos tive uma gestação de alto risco, com pressão que chegava a 19 por 12 (o normal seria de 12 por 8) e pesando 113 quilos. A situação piorou quando cheguei aos 128 quilos e tive risco de pré-eclâmpsia. O médico da minha cidade, Ilhota, se negou a me atender, dizendo que não se responsabilizaria pelo pré-natal de uma pessoa que sempre foi obesa. Durante a gravidez, então, precisei ir semanalmente para Blumenau e Itajaí, cidades distantes 25 e 35 quilômetros, respectivamente, da minha casa.

Eram exames toda semana, muitos remédios e passei todo o verão de 2015 dentro de um quarto, no ar-condicionado por conta do calor e do risco de pré-eclâmpsia. Quando cheguei num hospital público para parir, em Itajaí, na madrugada do dia 13 de junho, o “bom dia” da médica de plantão veio em forma de pergunta: “como uma pessoa gorda como você foi engravidar?”. Estava sozinha. Minha família, mãe e marido, só podia entrar nos horários de visita, e minha obstetra estava fora, numa conferência.

Não tive dilatação e introduziram comprimidos na minha vagina para ajudar no processo. Também tive que tomar soro e banho quente. A médica gritava comigo e me mandava abrir as pernas a cada vez que fazia o exame de toque. Eu chorava e via estrelas de tanta dor.

Minha mãe entrou num momento e me encontrou desmaiada na maca. No desespero, implorou que a médica fizesse cesariana, mas ela respondeu que não fazia cesárea em gorda.

Foram horas ouvindo coisas do tipo “gorda não pode engravidar”, “devia ter emagrecido antes de fazer um filho”, “se eu fizer cesárea, você vai morrer de infecção do mesmo jeito” e “não consegue abrir mais a perna de tão gorda”.

Doze horas depois de dar entrada no hospital, perdendo sangue e sem comer ou beber nada, houve troca de plantão e a médica que assumiu já chegou dizendo que teria cinco minutos para tentar salvar nós dois, sendo que eu tinha sete centímetros de dilatação, e a completa são 10, mas o meu filho já estava coroando.

Eu me senti como um animal: duas enfermeiras subiram em mim com toda a força e fizeram a manobra de Kristeller (técnica agressiva, em que se pressiona a parte superior do útero e que pode causar lesões graves como fratura de costelas na mãe e traumas encefálicos no bebê. O Ministério da Saúde e a Organização Mundial da Saúde condenam a prática).

Meu filho chegou às 23h40.

violência obstétrica - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Saionara conta que passou pela agressiva manobra de Kristeller durante o parto
Imagem: Arquivo pessoal

Fizeram uma episiotomia (corte entre a vagina e o ânus) em mim e levei 36 pontos. Tivemos alta na manhã seguinte, e quando achei que estava tudo bem, começou um novo pesadelo: o corte e os pontos foram feito de maneira tão erradas, que eu comecei a evacuar pela vagina, e involuntariamente. Estava tão traumatizada que não quis, num primeiro momento, ir ao hospital; mas depois de 12 dias, eu cheirava mal e estava branca.

Os exames mostraram que eu, de fato, estava com uma fístula retovaginal (comunicação anormal entre reto e vagina), além de feridas no útero. Elas foram causadas por uma enfermeira que colocava a mão para tentar abrir o colo do meu útero. Ela me rasgou com as unhas. Tive que ser operada novamente.

Depois de seis horas de cirurgia, o proctologista me colocou uma bolsa de fezes, que fica fora do meu corpo, próxima ao umbigo. Ela drena o líquido intestinal.

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Saionara perdeu peso após cirurgia bariátrica
Imagem: Arquivo pessoal

A adaptação não foi fácil. Foram muitas roupas para o lixo e noites em que acordei toda cheia de fezes. A previsão da retirada da bolsa era janeiro de 2017, mas para isso eu precisava perder 20 quilos. O médico sugeriu que eu fizesse uma cirurgia bariátrica. Ela ocorreu em outubro de 2016. Foi um sucesso mas, para minha surpresa, em dezembro 2016, descobri que estava grávida novamente.

Foi um desespero total. Ouvi de muitos médicos que precisaria esperar até as 16 semanas para saber se o feto viveria. Foram 34 semanas perdendo peso e tomando vitaminas para aumentar a minha força. Eu andava toda torta, porque sentia muitas dores. 

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Saionara com a família: esperando pela cirurgia de reversão de ileostomia
Imagem: Arquivo pessoal

Ouvi muitas críticas e médicos me diziam que ela nasceria com problemas mentais por conta do meu estado físico, e até que ela não sobreviveria. 

Perdi 28 quilos durante a gestação. Quatro especialistas fizeram meu parto, pois era um caso raro de cesárea com ileostomia pós-bariátrica. Sigo em frente, aguardando as próximas cirurgias na esperança de reverter a ileostomia. Não pretendo ter mais filhos e quero processar o hospital pelo que passei.

Médico sugere tempo entre estomia e bariátrica antes de uma gestação 

O ginecologista e obstetra especializado em reprodução humana da USP, Dani Ejzenberg, recomenda que mulheres que passarem por uma estomia (a abertura feita na parede abdominal) esperem seu fechamento para engravidar. Mas caso engravidem antes desse processo, a gestação pode acontecer normalmente. É preciso, no entanto, um cuidado maior com alimentação e maior ingestão de nutrientes. 

O médico fala também que mulheres que passaram por cirurgias bariátricas devem esperar cerca de dois anos para terem filhos. Esse é o tempo que elas perderão os quilos necessários e se adaptarão ao novo corpo. Nesses casos, médico e mulher devem decidir, juntos, o melhor tipo de parto.