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Como denunciar violência doméstica: mete mais a colher que tá pouco!

Não tenha dúvidas: ao ouvir gritos, denuncie!  - iStock
Não tenha dúvidas: ao ouvir gritos, denuncie! Imagem: iStock

Cíntia Marcucci

Colaboração para Universa

22/08/2018 04h00

Nos cometários de internet sobre casos de relacionamentos abusivos, violência contra a mulher e feminicídio é comum ter quem pergunte “por que não chamou a polícia?”, “tinha que ter denunciado antes”, “e os vizinhos, não fizeram nada?”

Muitas vezes a polícia foi, sim, acionada. Em entrevista à Universa, a promotora responsável pelo caso da morte da advogada paranaense Tatiane Spitzner, Dúnia Serpa Rampazzo disse que quatro vizinhos já haviam ligado para o serviço policial para falar sobre a briga do casal. A equipe chegou alguns minutos após uma última ligação, que dizia que havia um corpo na calçada.

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Embora nesse caso específico infelizmente não tenha sido possível intervir, é muito importante que as pessoas denunciem casos de violência doméstica, ou seja, metam mesmo a colher na briga de “marido e mulher”. É isso que ajuda a calcular estatísticas, desenhar o cenário de cada localidade e programar ações para que a realidade futura mude e os crimes desse tipo diminuam.

“Quando a pessoa ligar para o 190, que é o serviço nacional que atende e redireciona denúncias urgentes, ela deve dar o máximo de detalhes possíveis. Falar há quanto tempo a discussão ou briga está acontecendo, se ouviu pedidos de socorro ou frases ameaçadoras e, caso não esteja no local da briga, se ouviu barulhos de objetos quebrando ou que indicam possibilidade de violência física. É como descrever um quadro ou contar um filme para alguém que não pode vê-lo”, explica a delegada-chefe da Coordenadoria das Delegacias da Mulher do Paraná (Codem), Márcia Rejane Vieira Marcondes.

Márcia indica que, se a polícia não chegar na primeira ligação e a briga continuar, o ideal é ligar de novo, e de novo. Mostrar a urgência e gravidade do caso é importante, pois a polícia às vezes tem pouco efetivo para o número de chamados e precisa escolher quais denúncias atender, infelizmente.

O que uma ligação pode fazer 

A ligação da jornalista Simone Tinti teve pronto atendimento em São Paulo. “O casal estava gritando há horas, eles eram estrangeiros. A polícia chegou, interveio e precisaram de um intérprete. Meu irmão ajudou a explicar para eles o que estava acontecendo e como eram as leis no país. Disse também que aqui bater em mulher é crime. Na hora tudo se resolveu, não ouvi mais brigas e eles se mudaram tempos depois.”

A maioria das pessoas com quem a reportagem conversou disse que a polícia atendeu prontamente o chamado, mas que após a abordagem os agressores não foram levados à delegacia. Isso ocorre pois - aí sim - só a pessoa agredida pode prestar queixa, solicitar o flagrante ou mesmo autorizar a entrada no domicílio privado para checagem, proteção ou retirada de bens pessoais.

Para que número eu ligo?

A cozinheira Alessandra Luvisotto, de São Paulo, conta que teve dificuldades para ser atendida quando ouviu uma briga intensa de vizinhos do prédio onde morava. “A delegacia da mulher estava fora do horário de atendimento, na PM me disseram que só a própria vítima poderia denunciar e que precisavam de mandado judicial para ir até lá. No desespero, liguei nos bombeiros, Samu, 190, disque-denúncia, todos me falavam que era com a Polícia Militar. Aí alguém parou uma viatura na rua, mas os policiais se recusaram a entrar no prédio por não ter um mandado”, conta ela que não sabe o que ocorreu depois com o casal que brigava, pois eles se mudaram.

Existem poucas delegacias da mulher que atendem 24 horas. Em São Paulo, apenas uma, no centro, atende 24 horas e suas atribuições estão vinculadas à Polícia Civil. Quem atende emergências é sempre a Polícia Militar, por meio do telefone 190 (nacional, que é redistribuído para cada localidade e de acordo com cada necessidade). Outra possibilidade é acionar o Disque Denúncia (o número varia conforme o estado), sob anonimato. 

A polícia só pode invadir o local se houver indícios de perigo à vida de alguma pessoa, na chamada legítima defesa de terceiros. Mas não há impeditivos legais para que se toque a campainha ou interfone do local e pergunte se está tudo bem. Diga que receberam um chamado e estão verificando. “Não poderão entrar no local se os moradores não permitirem, nem retirar pessoas e levar a delegacia sem queixa dos envolvidos, mas a verificação é permitida e não infringe lei”, explica Márcia. E pode salvar vidas.

Posso denunciar um desconhecido?

Quando a arquiteta e ativista Enne Maia morava na periferia de Belo Horizonte e dividia o imóvel com a tia, que ocupava o andar de cima, também não conseguiu ajuda. “As mulheres da minha família infelizmente têm o histórico entrarem em relacionamentos violentos. Naquela noite, eu ouvi meu primo gritar ‘não mata a mamãe, não bate nela’. Pelo telefone, a polícia me disse que eu colocasse minha tia ao telefone para pedir ajuda. Mesmo eu explicando e até colocando o atendente para tentar ouvir os gritos, não tive retorno. No outro dia, ela estava toda machucada”, conta ela, que se tornou militante pelos direitos das mulheres depois de ver a mãe passar por violência, denunciar o pai, que chegou a ser preso ainda nos anos 80.

Ao contrário do que o policial disse a Enne, ela está em seu direito e dever de cidadã em denunciar a violência e o perigo que outra pessoa pode estar passando. “Se alguém ouvir essa justificativa, pode questionar o atendente, já que é possível até a denúncia anônima. Se houver recusa, é possível questionar a atitude policial na corregedoria da Polícia Militar”, explica a advogada Ana Paula Braga, da Braga e Ruzzi, escritório especializado na defesa de mulheres.

O protocolo policial

O processo que leva ao atendimento presencial de um chamado depende de muitas coisas, como a disponibilidade de pessoal no momento e uma avaliação da gravidade da situação. Embora esta seja subjetiva, todas as equipes policiais têm um protocolo a seguir para avaliar e atuar.

A ameaça à vida e à integridade física de alguém são sempre prioridade em relação aos chamados danos ao patrimônio, como furtos, roubos e assaltos sem vítimas. Por isso é importante explicar exatamente o que está ocorrendo quando solicitar o atendimento ao 190. Falar se já ouviu outras discussões antes, ligar mais vezes caso a viatura demore a aparecer são algumas atitudes recomendadas para qualquer pessoa que presencie casos de violência.

Ao chegar no local, a polícia vai avaliar a situação. “Se houver pessoas falando alto, discutindo, barulhos, o problema fica mais óbvio. Já se estiver tudo se acalmado, a abordagem fica mais difícil”, explica Márcia. Lá, eles podem conversar com as pessoas envolvidas, da porta para fora, porém entrar no imóvel sem a autorização de um dos moradores é impossível. Também não se pode levar ninguém para a delegacia caso não haja manifestação formal de um dos envolvidos.

Com autorização da vítima, os policiais podem entrar no imóvel para auxiliar na segurança para a retirada de pertences pessoais, por exemplo. 

Quem registrará a ocorrência será a delegacia mais próxima e, se o caso for de violência doméstica ou contra a mulher, será encaminhado para investigação por uma Delegacia da Mulher. Essas unidades estão ligadas à Polícia Civil de cada estado brasileiro.

Ao presenciar uma situação de violência ou perigo, a vontade natural é de que o responsável seja punido ou detido, porém, nem sempre as circunstâncias e as leis permitem que isso seja feito imediatamente. Nem por isso é certo achar que não adianta de nada ligar. A presença da polícia pode inibir ações mais violentas naquele momento ou até no futuro. Então meter a colher pode salvar vidas e ajudar, sim.