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"Meu filho morreu no meu colo após eu prometer que seguiria a missão dele"

A advogada Marcia Adriana e o filho, Thiago, que nasceu com uma grave e rara doença no coração - Arquivo Pessoal
A advogada Marcia Adriana e o filho, Thiago, que nasceu com uma grave e rara doença no coração
Imagem: Arquivo Pessoal

Adriana Nogueira

Do UOL

28/06/2017 16h50

A advogada Marcia Adriana Saia Rebordões transformou a dor da perda do filho em força para criar uma fonte de apoio para famílias sem recursos, a associação filantrópica Pequenos Corações. Thiago morreu aos três anos e meio, em decorrência de um grave problema cardíaco. Hoje, ela se dedica a ajudar outros pais com crianças cardiopatas.

Quando estava grávida de cinco meses, Marcia descobriu, em um ultrassom morfológico de rotina, que o filho tinha síndrome de hipoplasia do coração esquerdo, um problema grave e raro que atinge um a cada 5.000 bebês nascidos vivos no mundo. O nome da doença significava que Thiago tinha as estruturas do lado esquerdo do órgão subdesenvolvidas.

Sentença de morte

Feitos exames que comprovaram o problema, ela e o marido, Paulo, ouviram que o quadro era “incompatível com a vida”.

O prognóstico era que ele nasceria e ficaria vivo por, no máximo, três dias. A gente recebeu ali uma sentença de morte, que não aceitamos”, diz a advogada.

Marcia e Paulo, então, começaram a pesquisar e descobriram que nos Estados Unidos existiam adultos com a síndrome, ou seja, havia esperança de superar a doença.

Depois de muito procurar, o casal descobriu que no hospital BP (antiga Beneficência Portuguesa), em São Paulo, existia uma equipe operando crianças com esse problema e tendo bons resultados. Na peregrinação, Marcia soube de um paciente operado na instituição, que, na época, já estava com dez anos.

Thiago nasceu com grave problema de coração e morreu aos três anos e meio; personagem de matéria de UOL Comportamento - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Thiago passou por três cirurgias: uma com dois dias, a segunda, aos quatro meses, e a terceira, com dois anos
Imagem: Arquivo Pessoal

A etapa seguinte foi brigar com o convênio médico da família. Como eles moram em Bauru, no interior paulista, tiveram de convencer a administradora que a BP era a única esperança para Thiago.

O menino, então, nasceu na instituição e, com dois dias de vida, passou pela primeira cirurgia –foram três no total: outra com quatro meses e mais uma, aos dois anos. Os seis meses que ele passou se recuperando do procedimento inicial no hospital foram a semente da Pequenos Corações.

Histórias na web

“Nesse período, conheci várias mães que vinham de fora de São Paulo para que os filhos fossem operados. Elas dormiam nos sofás do hospital, não tinham dinheiro para comer, não tinham onde dormir nem tomar banho ou lavar roupa”, conta Marcia.

Depois de ver tantas dificuldades de perto, Marcia resolveu, depois que Thiago teve alta, criar o embrião da associação: o site Pequenos Corações. Com dinheiro doado pelo seu patrão na época, ela começou com o modesto objetivo de contar as histórias das famílias com filhos cardiopatas e disseminar informações sobre tratamentos. O recurso simples acabou criando uma rede de contatos.

Trabalho de madrugada

Além do site, Marcia entrou em uma comunidade do Orkut chamada Cardiopatia Congênita e começou a se envolver em ações para ajudar famílias sem recursos a buscarem tratamento para seus filhos.

O Thiago demandava tantos cuidados que eu usava as madrugadas para cuidar do site e conversar com outras pessoas que enfrentavam a mesma situação. Queria descobrir mais informações sobre a doença dele e dividir isso. Não sei de onde tirava energia.”

40 dias de luta

A terceira cirurgia que Thiago enfrentou deveria ser a derradeira para resolver os problemas que a síndrome causou ao coração dele, mas ele passou a ter complicações pulmonares, que causaram sua morte, pouco mais de um ano depois.

“Thiago fez a cirurgia ainda novo, com dois anos, e o ideal era esperar mais. Mas, no caso dele, não dava. Ele praticamente não tinha o lado esquerdo do coração, e o direito, por ser muito exigido para bombear sangue para o corpo, estava muito fraquinho”, fala Marcia. Foram 40 dias de luta no hospital antes de morrer.

“Ele ficou muito mal, mas não queria ir embora. Parecia que tinha consciência de que a história dele podia ajudar outras crianças. Com ele no colo, falei: ‘A mamãe sabe da sua missão e vai seguir em frente com ela’. Foi quando disse isso que ele relaxou e morreu nos meus braços.”

Casa de acolhimento

Um mês após a morte do filho, uma amiga conquistada na comunidade do Orkut falou para Marcia que era hora de ou ela sair de cena, após todo o sofrimento, ou mergulhar de cabeça no movimento que havia começado. Ela escolheu a segunda opção. Com essa amiga e mais outras duas --surgidas do relacionamento da comunidade virtual--, criou a associação Pequenos Corações, em 2010.

A entidade começou em dois quartos de hotel alugados. A sede –que também é alugada– só foi possível três anos depois. O atendimento consiste em dar às mães um lugar para dormirem, se alimentarem, tomarem um banho e lavarem roupas, para enfrentarem as longas internações dos filhos.

O sobrado, localizado perto de hospitais referência da capital paulista que atendem pelo SUS (Sistema Único de Saúde), tem capacidade para atender 18 mães por mês. O local ainda atende eventualmente as mulheres com os filhos, que voltam para consultas médicas de acompanhamento na cidade.

Thiago e o pai, Paulo; personagem de matéria de UOL Comportamento - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Thiago e o pai, Paulo, na casa da família em Bauru, interior de São Paulo
Imagem: Arquivo Pessoal
Até hoje, mais de 2.000 mães já passaram pela casa, que custa R$ 35 mil reais por mês para ser mantida. “Todo o dinheiro vem de doações de empresas e pessoas físicas. Não recebemos nenhum centavo do governo. Nos últimos meses, por causa da crise, perdemos mantenedores e estamos no vermelho.”

Briga em Brasília

Além do atendimento propriamente dito, a Pequenos Corações também batalha por políticas públicas específicas para as crianças que precisam de cirurgia e tratamento cardíaco. Tanto que uma das mães que atuam com Marcia na direção da entidade mora em Brasília e tem como missão lidar especificamente com essa área.

“Entre outras coisas, lutamos para que o SUS aumente o valor pago aos hospitais particulares que atendem crianças cardíacas pelo sistema público de saúde. Hoje, muitos deixam de atender porque não vale a pena financeiramente. São procedimentos muito caros. O problema é tão grave que das 23 mil crianças que precisam se submeter a cirurgias do coração, por ano, apenas 22% conseguem.”

Além da casa de acolhimento, em São Paulo, a Pequenos Corações tem 37 núcleos de voluntários espalhados pelo país. “Não são pontos físicos de atendimento, mas são grupos de pessoas que promovem eventos para arrecadar dinheiro para a associação, entre outras ações.”

O sorriso de Thiago

Questionada sobre de onde tirou forças para diante da perda do filho ter se envolvido com o projeto, a advogada reconhece que não viveu seu luto. “Entrei de cabeça na Pequenos Corações, mas, quando a associação tinha um ano, caí em depressão e fui fazer terapia, e continuo até hoje.”

Marcia conta que, um dia, Victoria, sua filha mais velha --que, na época, tinha 11 anos--, flagrou-a chorando e falou:

Mãe, não chora, você sabe que o Thiago veio para ajudar outras crianças. Então cada uma que sobrevive tem um pedaço do sorriso dele”.

“Quando estou triste, lembro das palavras dela. Apesar de tudo, meu filho era uma criança sorridente.”

Marcia Adriana Saia Rebordões com os filhos, Thiago e Victoria, e o marido, Paulo; personagens de matéria de UOL Comportamento - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Marcia Adriana Saia Rebordões com os filhos, Thiago e Victoria, e o marido, Paulo
Imagem: Arquivo Pessoal