Cross-dresser gosta de se vestir de mulher, mas não quer mudar de sexo
O que você faria se, ao chegar em casa encontrasse seu marido usando saia, lingerie, sapatos de salto alto, bijuterias e maquiagem? Se nunca pensou nisso, talvez seja o momento de avaliar a possibilidade. Há anos homens trocam os ternos e as gravatas por vestidos de seda e sandálias de tirinhas e mesmo assim continuam casados com suas mulheres, felizes com sua condição masculina. E, em muitos casos, elas nem sonham que isso acontece. Estes homens são chamados de cross-dressers, um título em inglês que procura distinguir os adeptos desta prática dos travestis que se prostituem. “Além disso, os travestis vivem o dia a dia como mulher, enquanto os cross-dressers, como homens”, explica a psicóloga Eliane Chermann Kogut, que defendeu tese de doutorado sobre o assunto.
Desde o ano passado o cartunista Laerte, de 59 anos, está despertando o interesse dos fãs não só por causa do seu trabalho, mas também por sair “montado” em público. A aproximação com o mundo do cross-dressing aconteceu via seu personagem Hugo, que certo dia resolveu experimentar o guarda-roupa feminino. Além disso, ele está lançando o livro "Muchacha", com uma personagem travesti. Com a mudança, ele passou a chamar mais a atenção e não ignora as risadinhas e olhares de reprovação. “Seria mentira se eu dissesse que a opinião alheia não me abala, mas estou fazendo o que meu coração pede. Meu objetivo é combater o medo e garantir minha liberdade”, diz ele, que exibe um corte de cabelo feminino, pinta as unhas, usa bijuterias, anda de saltinho e tem uma namorada.
Ditadura de gênero
Laerte afirma que sua motivação é o inconformismo com a ditadura de gênero. “As mulheres usam roupas masculinas desde o início do século passado, por que o contrário não pode acontecer?”, questiona o cartunista. Veja a entrevista de Laerte abaixo:
Para a psiquiatra Carmita Abdo, coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade da Universidade de São Paulo, tudo que foge do padrão causa estranheza e desconcerta as pessoas. “O preconceito se deve muito à falta de conhecimento e às tradições e conceitos arraigados, sem nenhuma base, de que este comportamento está ligado à sexualidade. Na nossa cultura ficou convencionado que a mulher é quem deve se arrumar, mas em muitas tribos indígenas quem se enfeita é o homem e ninguém questiona.”
Eliane explica que os cross-dressers não têm dúvidas sobre seu gênero e não querem mudar de sexo. “Pode até acontecer de um cross-dresser ser gay, mas não é comum. Tanto que não encontrei homossexuais na minha pesquisa, apenas héteros e bissexuais.”
Fantasia e realidade
Para Laerte, o cross-dresser é o questionamento de uma tradição cultural repressiva e não tem nada a ver com moda ou fetiche. “Sexualidade é uma coisa, gênero é outra”, diz ele.
O advogado Márcio*, 47 anos, casado e pai de duas filhas, assume possuir duas identidades de gênero. “Eu tenho orgulho de ser homem, mas gosto de me ‘montar’ e me passar por mulher. Desde a infância tenho este desejo e só na vida adulta pude realizá-lo”.
Ele prefere não se expor para preservar as filhas, mas além do guarda-roupa completo de uma mulher de 1,80 m, Márcio é totalmente depilado, fez laser para extinguir a barba, mantém o cabelo bem tratado e tomou hormônios para ganhar seios. Para evitar o preconceito esconde as mamas com faixas e camisa larga. “Só alguns amigos íntimos e meus pais sabem. No trabalho, ninguém imagina, mas, se alguém descobrir, vou agir com naturalidade”.
Exposição controlada
Reprodução do site Brazilian Crossdresser Club
No Carnaval, vários homens abusam da indumentária feminina, com seios e cílios postiços e isso é aceito porque se trata de uma fantasia. Fora da festa popular, porém, “montar-se” da cabeça aos pés não tem nada a ver com fantasia. “Eu não me visto para transar, não tenho ereção com isso, não tem nada a ver com um fetiche sexual”, diz Márcio.
Carmita explica: “O grande objetivo é a figura feminina que os cross-dressers constroem. Eles não têm uma personalidade duvidosa, não querem mudar de gênero”.
Mesmo assim, nem sempre se aventuram pelas ruas “montados”. “O medo de serem reconhecidos é grande, por isso preferem se reunir em grupos”, diz Eliane.
Para isso servem os clubes, como o Brazilian Crossdresser Club, que existe desde 1997, do qual Márcio participa. Eles promovem viagens, fecham hotéis para uma programação em fins de semana e até cruzeiros nos quais, além dos crossdressers, participam toda a família – os filhos e as esposas ou namoradas.
Por quê?
Não se sabe com certeza o que leva homens e mulheres a desejarem se vestir como pessoas do sexo oposto, mas segundo Carmita, na infância, ao longo do desenvolvimento da identidade, o desejo pode se manifestar e sumir. “Ou permanecer ao longo de toda a vida, em segredo ou não”.
Essa necessidade que incomoda a sociedade conservadora, tradicional e preconceituosa pode ser motivo de muito sofrimento e angústia quando não consegue ser partilhada e exposta. “Acreditamos que as pessoas possam ter propensão a ser crossdressers e que o desejo se manifeste em momentos de grande angústia. Também existem as hipóteses dos cross-dressers terem tido pais muito severos ou omissos e que eles não queriam como modelo. No imaginário destes homens a imagem da mulher funciona como conforto”, diz Eliane.
*O nome foi mudado a pedido do entrevistado
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.