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A influencer transgênero muçulmana presa 'por usar roupas de mulher'

Nur Sajat foi criticada por postar fotografias usando o hijab - Arquivo pessoal
Nur Sajat foi criticada por postar fotografias usando o hijab Imagem: Arquivo pessoal

Jonathan Head

Correspondente no sudeste da Ásia

24/11/2021 16h39

Em setembro, surgiu a notícia de que as autoridades de imigração da Tailândia prenderam uma glamorosa empresária malaia do ramo de cosméticos. Com 36 anos de idade e enorme quantidade de seguidores nas redes sociais, Nur Sajat Kamaruzzaman estava refugiada no país esperando obter asilo para ir para a Austrália.

As autoridades da Malásia haviam solicitado imediatamente a sua extradição por ter sido acusada de insultar o Islã em janeiro. A acusação é passível de punição com até três anos de prisão.

A ofensa de Nur Sajat foi vestir um baju kurung, o tradicional traje de mangas longas usado pelas mulheres malaias, em uma cerimônia religiosa particular em 2018.

Aos olhos das autoridades da Malásia, Nur Sajat é considerada homem e, pela lei islâmica, homens não podem se vestir como mulheres.

Por causa do seu status de refugiada, Sajat conseguiu evitar a extradição e ir da Tailândia para a Austrália, onde conseguiu cidadania.

Em entrevista para a BBC em Sydney, na Austrália, ela contou que não teve escolha a não ser fugir da Malásia, depois de ser abordada por funcionários do JAIS, o departamento de assuntos religiosos do Estado de Selangor, que havia apresentado as acusações contra ela.

"Eu tive que fugir. Fui maltratada. Eu fui agredida, empurrada e algemada, tudo na frente dos meus pais e da minha família. Fiquei triste e envergonhada. Eu cooperei com eles, mas, mesmo assim, eles ainda fizeram isso comigo", ela conta.

"Talvez porque eles me veem como uma mulher trans e, por isso, não se importavam em me segurar, bater e pisar em mim. Nós, mulheres trans, também temos sentimentos. Só queremos viver como todo mundo", disse ela.

Mulçumana praticante

Nur Sajat tem um grande número de seguidores nas redes sociais - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Nur Sajat tem um grande número de seguidores nas redes sociais
Imagem: Arquivo pessoal

Nur Sajat é uma empresária bem sucedida, que construiu sua carreira sozinha. Ela conta que, sete anos atrás, começou a promover-se nas redes sociais. Ela desenvolveu seus próprios suplementos de saúde e produtos de cuidados com a pele teve muito sucesso com um corset com a sua marca.

Com aparência impecavelmente arrumada e postagens divertidas nas redes sociais, ela atraiu centenas de milhares de seguidores, tornando-se uma celebridade nacional. Foi quando começaram os questionamentos sobre o seu gênero.

Na verdade, nunca havia sido um segredo. Nur Sajat participou de um famoso concurso de beleza transgênero na Tailândia em 2013 e foi premiada com a sua dança.

O que chamou a atenção na Malásia foi o fato dela ser muçulmana praticante e ter postado fotografias vestindo o hijab - o véu islâmico usado pelas mulheres.

Ela explicava a quem perguntasse que havia nascido com a genitália masculina e feminina, ou seja, que era intersexual - uma condição que, no Islã, é tratada com mais tolerância quando a pessoa quer mudar o gênero atribuído no nascimento.

Em 2017, Nur Sajat anunciou que havia feito cirurgia genital e postou uma declaração do médico com a confirmação.

As autoridades decidiram investigar. O JAKIM, o Departamento de Desenvolvimento Islâmico, afirmou que seriam necessárias provas de que ela nasceu intersexual. Eles se ofereceram a ajudar Nur Sajat com o que chamavam de "confusão de gênero".

A controvérsia aumentou no ano passado, quando foram publicadas fotografias de Nur Sajat vestindo roupas femininas usadas para rezar, em peregrinação com sua família para Meca, despertando críticas dos muçulmanos conservadores.

Posteriormente, ela pediu desculpas por ter causado tamanho alvoroço, mas, um ano depois, ela estava enfrentando acusações criminais.

"Quando estava na terra santa, eu só me perguntava... talvez haja uma razão para a forma como nasci?", relembra Nur Sajat. "Como mulher transgênero e muçulmana, acredito que tenho o direito de expressar minha religião da minha própria forma. Não há razão para que eles me condenem como se estivessem fazendo o trabalho de Deus."

A BBC pediu ao Departamento de Assuntos Religiosos da Malásia que comentasse sobre o caso de Nur Sajat, mas não recebeu resposta.

Em setembro, o Ministro de Assuntos Religiosos, Idris Ahmad, afirmou: "Se ele está disposto a vir conosco, admitir que fez errado, se estiver disposto a voltar para a sua natureza verdadeira, não há problema. Nós não queremos puni-lo, apenas queremos educá-lo"

A BBC questionou o mufti (consultor islâmico sênior) do Estado de Perlis, na Malásia, Mohammad Asri Zainul Abidin, se seria possível que os muçulmanos malaios aceitassem pessoas transgênero.

"Para mim, Sajat é um caso isolado", segundo ele. "Sajat fez muitas coisas que provocaram a reação das autoridades religiosas. Normalmente, no Islã, nós não interferimos em questões pessoais. Isso é entre você e Deus. Mas nunca reconheceremos esse pecado. Se você apenas sente que é uma mulher e quiser entrar no banheiro feminino, você não pode."

A Malásia possui um sistema legal de duas vias, com a Sharia (a lei islâmica) adotada nos 13 estados do país e três territórios federais, para regulamentar questões morais e familiares para os 60% da população que são muçulmanos. Isso cria problemas constantes para a comunidade LGBTQ.

"A Sharia é especificamente voltada à nossa comunidade em cada estado", afirma Nisha Ayub, defensora transgênero que também foi presa uma vez por usar roupas femininas "Devido à existência da Sharia, temos políticos, líderes e autoridades religiosas que fazem declarações muito negativas sobre a comunidade. E isso cria um ambiente muito inseguro para nós."

A mudança para a 'islamização'

Mas nem sempre foi assim.

"Na verdade, a Malásia já foi muito tolerante e aceitava a comunidade transgênero", diz Rozana Isa, fundadora do grupo Irmãs no Islã, que trabalha com os direitos das mulheres no Islã e apoiou Nur Sajat.

"Você podia vê-las vivendo de forma muito visível entre as nossas famílias, nas nossas comunidades e participando da vida pública. Mas, nos últimos 30 anos, nós embarcamos em uma política de islamização. Por isso, você agora vê mais leis e mais interpretações do Islã muito mais restritas em termos de aceitação da diversidade", afirma ela.

O Islã não é apenas a religião oficial da Malásia. Ele é também definido como atributo essencial dos malaios, que formam o maior dos diversos grupos étnicos do país.

Para ganhar as eleições, os partidos políticos sabem que precisam ter bom desempenho nas chamadas "regiões centrais da Malásia", onde as pessoas tendem a ter visão religiosa mais conservadora. Os partidos frequentemente apelam para essas áreas com convocações por uma defesa mais veemente dos valores islâmicos.

Recentemente, com a turbulenta situação da política malaia e a economia abalada pela pandemia, existem suspeitas de que a busca severa por Nur Sajat tenha sido conduzida mais por um governo fraco precisando de apoio dos muçulmanos que por legítimas preocupações religiosas.

Nisha Ayub argumenta que é também responsabilidade do governo garantir a proteção dos direitos dos transgêneros, independentemente das diferentes visões islâmicas. Ela ressalta que outros países islâmicos, como o Irã e o Paquistão, mudaram suas leis com esse propósito.

"Se os nossos líderes reconhecessem as minorias como parte da sociedade, tudo mudaria", afirma ela. "Tudo começa com as leis que precisam ser reformadas. Enquanto houver leis dirigidas especificamente à nossa comunidade, as coisas nunca vão mudar."

Nur Sajat sente muita falta dos seus dois filhos adotados - um menino e uma menina - que estão sob os cuidados da sua família na Malásia, mas a oportunidade a incentivou a compartilhar sua experiência com outras pessoas transgênero na Austrália.

Rozana Isa, fundadora de Irmãs no Islã, pediu aos malaios que sejam "mais abertos e maduros sobre as redes sociais".

"Por que estamos culpando tanto Sajat? Ela não estava prejudicando ninguém com suas postagens, nem por estar na Meca. Nós precisamos nos policiar, em vez de policiar os outros", conclui ela.