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Afeganistão: como era a vida das mulheres antes do Talibã

"Tudo o que foi conquistado está em risco agora", diz professora de relações internacionais - Getty Images
"Tudo o que foi conquistado está em risco agora", diz professora de relações internacionais Imagem: Getty Images

06/09/2021 12h19

Enquanto o país inicia outra era sob o Talibã, há grande temor de que as mulheres do país voltem a ser tratadas como no primeiro regime do grupo fundamentalista.

Os direitos das mulheres no Afeganistão tiveram muitas idas e vindas no último século.

Desde o início do século 20, as mulheres afegãs têm se mobilizado para conseguir mais liberdade e igualdade de gênero. Mas, ao longo dos anos, seus esforços foram contrapostos por medidas radicais tomadas por homens para detê-las.

Quando o Talibã assumiu o poder pela primeira vez no país, em 1996, o direito das mulheres à educação e ao emprego foi brutalmente suspenso. As afegãs só podiam sair de casa acompanhados por um familiar do sexo masculino e eram obrigada a usar uma burca que as cobrisse totalmente. Aquelas que desobedeciam as regras eram severamente punidas.

Agora, enquanto o país inicia outra era sob o Talibã, há um grande temor de que as mulheres do país sofram outros tempos sombrios.

Mas como era a vida das afegãs antes da primeira chegada do Talibã? E antes da invasão soviética em 1979?

Mudança progressiva

Alguns historiadores afirmam que o movimento pelos direitos das mulheres no Afeganistão teve início no início do século 20, com o reinado de Amanulá Khan, e suas reformas para modernizar o país, de 1919 a 1929.

Nessa época, o Afeganistão começou uma mudança progressiva para levar o islamismo tradicional para a modernidade.

Khan introduziu uma nova constituição que buscava garantir os direitos das mulheres. Novas escolas para meninos e meninas foram abertas, a idade mínima das mulheres para o casamento foi aumentada e os casamentos forçados foram proibidos. Regras rígidas de vestimenta para mulheres também foram proibidas.

As reformas modernizadoras de Khan, no entanto, geraram vários levantes de tradicionalistas e conservadores. Em 1929, ele foi derrubado e quase imediatamente Muhammad Nadir Shah se autoproclamou rei. Em pouco tempo ele aboliu muitas das reformas que Khan havia promulgado.

Essa era, entretanto, não durou muito.

Nadir Shah foi assassinado em 1933 e muitas das iniciativas de Khan foram retomadas durante o longo reinado do filho de Nadir Shah, Muhammad Zahir Shah, o último rei do Afeganistão, de 1933 a 1973.

As escolas para meninas foram restabelecidas, uma nova universidade foi fundada e uma nova constituição foi instituída. E em 1964 as mulheres afegãs receberam o direito de votar.

Interpretações do Islã

Toda a primeira metade do século reflete as profundas divisões que existem no Afeganistão entre reformistas e tradicionalistas.

E também mostra as diferentes interpretações que diferentes grupos fazem sobre o Islã e sua influência sobre o direito das mulheres, afirma Mona Tajali, professora de relações internacionais do Agnes Scott College, na Geórgia, Estados Unidos.

"Como aconteceu em muitas outras sociedades, no Afeganistão tivemos essas narrativas concorrentes sobre os direitos que uma mulher deve ter", explica Tajali. "Existem interpretações reformistas da religião, que são totalmente a favor da igualdade de gênero. E há interpretações conservadoras, que dizem que as mulheres não devem ser educadas, que elas não precisam entrar no mercado de trabalho e que definitivamente não precisam ter uma presença no Parlamento."

Era comunista

Em 1973, Zahir Shah foi deposto por seu primo, Mohammed Daoud Khan, encerrando mais de 200 anos de governo monárquico no Afeganistão.

E durante a proclamada República do Afeganistão, os direitos das mulheres continuaram a aumentar.

"Começou a ter a presença de mulheres no Parlamento, foi um momento de grande ênfase na formação universitária para mulheres, na presença das mulheres na esfera pública e nos cargos públicos", afirma Mona Tajali.

O status das mulheres afegãs continuou a melhorar durante os regimes apoiados pelos soviéticos no final dos anos 1970, quando o Partido Democrático do Povo do Afeganistão marxista assumiu o poder na Revolução de abril de 1978.

E a melhora continuou após a invasão soviética em 1979.

"A invasão soviética ampliou consideravelmente a igualdade de gênero", explica à BBC Mariam Aman, jornalista do serviço persa da BBC.

"Principalmente no setor de educação, 45% dos professores eram mulheres. Pode-se dizer que os direitos das mulheres atingiram seu ponto alto durante o regime comunista", diz Aman.

O parlamento fortaleceu a educação das meninas e proibiu práticas como oferecer mulheres para selar disputas entre duas tribos ou forçar as viúvas a se casarem com o irmão do falecido marido.

"Foi uma época em que mudanças enormes foram vistas e durante esse tempo o movimento das mulheres no Afeganistão realmente começou a tomar forma", diz Mona Tajali à BBC Mundo.

Mas, como aconteceu em muitos outros países, esse movimento de mulheres não se espalhou por todo o país.

E em um país tão complexo como o Afeganistão continuaram a haver diferenças marcantes entre o status das mulheres nas áreas rurais e urbanas e profundas divisões dependendo de sua etnia, tribo e, acima de tudo, religião.

"Os avanços para as mulheres se concentraram predominantemente em Cabul", explica Mariam Aman. "A elite da classe dominante de Cabul havia criado um oásis de liberalismo na Universidade de Cabul e no palácio, mas isso dificilmente se estendia aos cidadãos comuns", acrescenta.

Além disso, diz Mariam Aman, as divisões entre reformistas e tradicionalistas e as narrativas opostas sobre o Islã e o papel das mulheres se aprofundaram ainda mais durante os regimes comunistas.

"Este conflito tornou-se enormemente significativo durante os regimes de esquerda", explica ela. "E, além disso, havia uma pobreza profundamente enraizada. O acesso à educação era limitado às cidades, os casamentos infantis ainda eram o costume e havia uma total ausência de mídia gratuita.

Entre dois regimes do Talibã

Em 1996, os direitos que as mulheres mais urbanas e em regiões menos tradicionais tinham conquistado chegaram a um fim abrupto com a ascensão do Talibã ao poder.

Quando o regime do Talibã foi derrubado por uma coalizão militar liderada pelos EUA, em 2001, as mulheres foram aos poucos reconquistando seus direitos no novo governo civil.

Elas voltaram a trabalhar, a estudar, a sair de casa sozinhas, não eram mais obrigadas a usar a burca e podiam ocupar cargos públicos - algumas conseguirem se eleger como prefeitas e congressistas.

E agora, 25 anos depois, quando o Talibã inicia uma nova era de poder no Afeganistão, muitos temem que a história da perda dos direitos das mulheres se repita.

"Esse é o grande medo", diz Mona Tajali. "Estive em contato com grupos de mulheres e ativistas pelos direitos das mulheres no Afeganistão e eles nos disseram que não acreditam que o Talibã tenha mudado em nada."

"Eles acham que o Talibã tentará retornar às suas interpretações conservadoras da Sharia (a lei islâmica) e tentará devolver as mulheres à esfera doméstica", afirma Tajali.

"Tudo o que foi conquistado está em risco agora", acrescenta.