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As 4 vidas de Piera Aiello, a mulher que viveu sem rosto durante 3 décadas por enfrentar a máfia na Itália

Angelo Attanasio* - BBC News Mundo

18/07/2020 16h59

Ela testemunhou o assassinato de seu marido, um gangster siciliano, e escolheu colaborar com a Justiça. Sua decisão a forçou a viver com outra identidade por 27 anos.

Piera Aiello ainda não sabe, mas sua primeira vida está prestes a terminar.

São nove horas da noite de 24 de junho de 1991. Nesse exato momento, ela está brincando na cozinha de seu restaurante.

Ela tem 23 anos, uma filha de três anos que dorme em casa com os avós, e um marido, Nicola Atria, que será assassinado diante de seus olhos em alguns minutos.

No terraço da pizzaria Europa, que Piera comanda com o marido, o verão não dá sinais de trégua. O clima abafado percorre todos os cantos da cidade de Montevago, 20 ruas e uma catedral na base do Valle del Belice, no interior do oeste da ilha da Sicília.

O local não tem o charme dos templos gregos de Agrigento, os elegantes edifícios de Palermo, nem as águas azul-turquesa de Marsala ou Trapani, e poucos fora da ilha sabiam de sua existência até 1968, quando um terremoto varreu várias cidades da região do mapa e causou a morte de centenas de seus habitantes.

O nome acabou gravado na memória coletiva do país e, devido ao ritmo lento de reconstrução, a corrupção e os interesses poucos transparentes que se tornaram evidentes nos anos seguintes acabaram associando-o irremediavelmente a duas palavras: Cosa Nostra.

Mas Piera não pensa em nada disso enquanto ainda está ocupada na cozinha de sua pizzaria. Ela está mais preocupada em cuidar de sua irmã grávida, que está no terraço com outros clientes.

De repente, ela ouve a cortina de vime da cozinha se mover.

Piera se vira e vê um homem com um capuz sobre a cabeça: ele veste um traje de camuflagem, cheira a gasolina e tem uma espingarda na mão.

Ele é baixo e avança em direção ao casal.

"O que está acontecendo?", grita ela, enquanto o homem aponta a arma. Seu marido empurra Piera contra a parede e diz: "Não toque na minha esposa".

Entra outro homem, muito maior, também com uma espingarda e dedo no gatilho.

Piera pula, agarra a culatra da espingarda, o objeto está quente e cheira a gasolina. Atrás dela, ouve duas explosões, suas mãos arrancam a culatra, o homem se liberta, a aperta contra a pia e com a outra mão dispara.

O marido de Piera grita - e cai no chão.

O ar da cozinha cheira a pólvora e a gasolina.

Nicola está morto.

***

"É uma sensação estranha", diz Piera, 29 anos depois do crime, recostando-se na poltrona do escritório que compartilha com um colega em Roma, capital da Itália.

Ela limpa sua garganta.

"Você sente alívio porque sobreviveu. Mas, ao mesmo tempo, sente um vazio. Esse é o sentimento quando você testemunha um homicídio", acrescenta ela em entrevista à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC.

Sua empregada abre as janelas do escritório. O ar é permeado pela fumaça do cigarro.

Piera - Getty Images - Getty Images
Após a Segunda Guerra Mundial, as famílias da máfia siciliana impuseram seu controle sobre a ilha com assassinato e extorsão.
Imagem: Getty Images

Nem mesmo um raio de sol de início de março entra pelas persianas, iluminando uma Roma mergulhada em plena crise causada pela pandemia do novo coronavírus.

No fim da rua, pode-se ver o Palazzo Montecitorio, a sede do Parlamento italiano e também o local de trabalho de Piera desde que, há dois anos, começou sua quarta vida.

"Agora que sou deputada, fumo como um caminhoneiro", confessa.

A PRIMEIRA VIDA: A VIOLÊNCIA DA MÁFIA

Piera Aiello - Kako Abraham/BBC - Kako Abraham/BBC
Imagem: Kako Abraham/BBC

Em sua primeira vida, Piera é Piera Aiello, um nome que ela perderá e não recuperará até o início de sua quarta vida. Mas isso só acontecerá mais tarde.

Agora, Piera é adolescente em Partanna, vilarejo da Sicília onde nasceu em 1967 e que deixou junto de sua família alguns meses depois, quando o terremoto o devastou, para embarcar rumo à Venezuela.

Cinco anos depois, ela retornaria à terra natal.

Com a puberdade confundindo seus desejos, naquela cidade siciliana que nada tem a ver com a Venezuela da qual sua família voltou com mais dinheiro, Piera se dá conta de três coisas.

Que em Partanna não é bem visto que as meninas expressem seus pensamentos.

Que, como em muitos outros vilarejos da ilha italiana, existem dois guardiões veteranos que patrulham as ruas e punem os cidadãos rebeldes: o medo e a omertà (código não escrito que proíbe denunciar atividades criminosas. Quem o violar, pode sofrer retaliação violenta).

E que esses guardiões respondem a um homem que eles dizem ser um paciere, que parece ser respeitado por todos e a quem se dirigem com reverência, como o protagonista da trilogia de "O Poderoso Chefão": Don Vito.

Mas Don Vito de Partanna não se chama Corleone, como o filme, mas Atria, e ele não tem o olhar enigmático de Marlon Brando, mas os modos rudes de um chefe da máfia local.

Don Vito Atria tem uma filha mais nova que Piera, Rita, e um filho um pouco mais velho, Nicola, que se apaixona por ela.

Eles começam a namorar - "com a aprovação prévia, é claro!" - de suas respectivas famílias.

Mas o comportamento possessivo de Nicola, suas frequentes traições e a conversa doce que os habitantes da cidade dedicam a Piera por ser a nora de Vito Atria convencem-na a interromper o relacionamento.

***

"Nicola não ficou muito afetado, mas o pai dele não aceitou essa afronta", lembra ela à BBC News Mundo de seu escritório em Roma.

"Depois de algumas semanas, Don Vito veio à minha casa e me disse: 'Não me importo se você o fará sofrer por um mês, dois meses, um ano, dez anos... mas, no final, você será minha nora. Porque todos nós temos uma família que amamos.'"

Piera faz uma pausa e se lança sobre a mesa. Então continua.

"Ele estava praticamente me ameaçando. Naqueles anos, se matava em Partanna por muito menos, mesmo por um olhar enviesado", lembra.

"Essa foi a primeira encruzilhada da minha vida."

***

Piera tem 18 anos e quatro meses quando se casa com Nicola.

Nove dias após o casamento, em 18 de novembro de 1985, enquanto está em lua de mel, o casal recebe a informação de que Don Vito Atria "sofreu um acidente".

Esse acidente é uma explosão que claramente ninguém viu ou ouviu.

Em frente ao cadáver de Don Vito, deitado no mármore branco do necrotério, Nicola Atria grita a promessa que será sua sentença: "Quem matou meu pai pagará com sangue".

Entre 1983 e 1997, na Sicília, houve 1.464 assassinatos da máfia, segundo o órgão de estatística italiano (ISTAT). Somente na província de Trapani, à qual pertence Partanna, entre 1983 e 1993, houve 88 assassinatos envolvendo a máfia.

Naqueles anos, uma guerra sangrenta foi travada entre os diferentes clãs pelo controle do comércio internacional de drogas e armas.

Segundo as autoridades, Vito Atria foi vítima de um acerto de contas. No entanto, os responsáveis nunca foram encontrados.

Nos anos que se seguiram ao assassinato de seu sogro, Piera se dá conta de outras três coisas.

A primeira é que o marido negocia com traficantes de drogas locais.

A segunda, que será difícil se libertar da violência de Nicola.

"Nunca perdia a oportunidade de me aterrorizar", diz.

"Uma vez ele começou a me chutar na barriga. Estava grávida de oito meses. Pensei que o bebê e eu íamos morrer."

Mas o bebê nasceu, uma menina.

As tradições exigiam que ela recebesse o nome de sua sogra, nesse caso, Giovanna.

Mas Piera decidiu desafiar a família Atria.

Questionada sobre o porquê, ela diz: "Não queria me curvar só porque eles me mandaram. Embora eu soubesse que isso teria consequências. E, de fato, foi o que aconteceu."

Piera batizou a menina de Vita Maria.

"'Vita' porque essa garota deu sentido à minha vida", diz. "E Maria, porque rezei para a Virgem Maria que fosse uma menina, para não seguir os passos de seu pai e avô."

***

Naqueles anos, há outra pessoa na família de seu marido que marcará seu destino para sempre.

Ela é Rita Atria, irmã adolescente de Nicola, com quem ela estabelece um relacionamento íntimo e de confiança mútua.

A terceira coisa que Piera se dá conta é que o marido está buscando os assassinos de seu pai e que ele obteve pistas suficientes para saber quem foi o mandante do crime.

Mas o código de honra sequer o proíbe de falar com os sbirri (palavra depreciativa usada para se referir à polícia e instituições judiciais).

Nicola sabe muito bem o que significa atravessar a porta de uma delegacia com a intenção de acusar um membro da máfia.

Ele sabe que colaborar com a polícia, revelando o que sabe sobre a organização criminosa, significa tornar-se um pentito (pessoa que pertence ao crime organizado que decide se arrepender e colaborar com a justiça), o que, para a Cosa Nostra, é muito pior do que um traidor.

É assim em muitas partes da Sicília. E ainda mais em cidades pequenas como Partanna ou Montevago.

Não, ele tem que encontrá-los por conta própria e se vingar, matando seus assassinos.

Mas pensar que alguém pode fazer certas perguntas - naquele território e naquele período - e esperar que ninguém descubra é ingenuidade ou imprudência.

Nicola não é uma coisa nem outra. Ele sabe que quem está procurando compartilha o mesmo código e as mesmas regras.

Finalmente, acredita ter encontrado o assassino de seu pai e contrata dois assassinos profissionais para matá-lo.

Mas a emboscada falha - não está claro o porquê - e agora é sua vez de ficar em guarda.

Piera não tem escolha a não ser limpar as manchas das camisas do marido na altura dos quadris todos os dias, onde ela carrega uma pistola de calibre 7,65.

Seu marido a convence de que não tem outra escolha a não ser aprender a atirar por conta própria e sempre carregar uma submetralhadora - "o iraniano, ele a chamava" - entre as fraldas e as mamadeiras de Vita Maria.

Mas nem o conselho de Nicola, nem as aulas de tiro nem a submetralhadora impedirão a fatídica noite de 24 de junho de 1991, na qual Piera Aiello perderá seu marido - e a partir da qual perderá seu nome.

***

"Quando a polícia me informou do assassinato, decidi acompanhar a autópsia", lembra Morena Plazzi.

Plazzi é uma juíza de Bolonha, uma cidade no norte da Itália, onde a máfia naqueles anos era um fenômeno mais distante. A 1,3 mil quilômetros dali, ficava Sciacca, cidade na província de Agrigento, para onde foi enviada como procuradora.

Foi seu primeiro emprego, ela tinha 28 anos e começou a trabalhar ali havia um mês.

Quando Plazzi chegou ao necrotério, a cena que assistiu parecia a imagem clichê da Sicília para alguém que viesse do norte do país.

"Havia um grupo de mulheres, todas vestidas de preto, que cercavam a jovem viúva. Outras, também de preto, gritavam sua dor e lamentavam o 'infortúnio' que o destino lhe reservara", diz ela à BBC News Mundo.

"'Mas de qual desgraça elas estão falando?', perguntou ela à viúva. 'Seu marido foi baleado na cara, ele foi morto'", responderam.

Plazzi lembra que uma das coisas que mais a surpreendeu nesse período como promotora na Sicília foram os poucos relatos de furtos ou roubos.

Isso porque a Cosa Nostra se encarregava de matar esses criminosos.

E muitos desses assassinatos tinham um fator em comum: ninguém tinha visto ou ouvido nada.

Também não havia lei de proteção às testemunhas - ela só entraria em vigor dez anos depois, em 2001.

Sendo assim, diz a juíza, ninguém se arriscava a denunciar as atividades da máfia.

Mas policiais afirmaram a Plazzi que com aquela viúva poderia ser diferente, que a família de Piera Aiello não tinha conexão com a máfia, que ela deveria tentar.

"Aproximei-me da jovem e disse: 'Se você precisar conversar com alguém, estou disponível, como mulher, como mulher da mesma idade, como amiga. Você não precisa se tornar uma delas, com o lenço preto enrolado na cabeça por toda a sua vida. Deixe o luto para elas."

Ela conseguiu esconder um pedaço de papel com o número de telefone de Plazzi, pouco antes de sua sogra e as outras mulheres a levarem embora.

Questionada se teria sido perigoso para ela falar com a polícia, a juíza responde: "Claro que sim!".

"A máfia naqueles anos matou um garoto e dissolveu seu corpo em ácido. Você acha que eles teriam tido qualquer escrúpulo em matá-la por ser mulher?"

A SEGUNDA VIDA: UM LIMBO INDEFINIDO

Piera 2 - Kako Abraham/BBC - Kako Abraham/BBC
Imagem: Kako Abraham/BBC

"Aiello Piera, [...] enquanto pessoa informada dos fatos, já há algum tempo começa a fornecer declarações detalhadas sobre inúmeros homicídios e outros crimes que ocorreram na área de Belice e está trazendo declarações interessantes sobre a estrutura e o tamanho das famílias mafiosas naquela área, alvo de um banho de sangue nos últimos tempos por ataques muito sérios entre grupos rivais."

"Aiello, viúva de um dos que foram mortos, faz essas declarações sem o conhecimento de seus familiares e vive com medo de ser descoberta."

"Portanto, é necessário que a mencionada, cuja colaboração continua e se prolongará por um tempo indefinido, seja assistida para poder se afastar de Montevago e ser adequadamente protegida."

Essas declarações constam do pedido que o Ministério Público de Marsala - a 60 quilômetros de Partanna, na província de Trapani - enviou em 26 de agosto de 1991 ao Alto Comissariado para a luta contra o crime organizado em Roma.

Para Piera, no entanto, é o papel que certifica seu segundo nascimento.

As dores do parto começam um mês antes, quando em sua casa Piera ainda ouve condolências de conhecidos e advertências de sua sogra para que não fale com os sbirri.

Mas ela decide aceitar o convite de Plazzi.

Documento com o qual tribunal solicita, em agosto de 1991, proteção policial para Piera Aiello - Reprodução - Reprodução
Documento com o qual tribunal solicita, em agosto de 1991, proteção policial para Piera Aiello
Imagem: Reprodução

Ele marca um encontro com um carabiniere (policiais) e segue em seu carro para a delegacia, onde troca de automóvel e depois por outro.

No caminho para Palermo, permanece com a dupla o medo de que alguém os estivesse seguindo.

Eles mudam de rota, seguem um caminho secundário, mudam de rota novamente, ficam confusos, falam pouco, se entreolham, checam se está tudo bem, se entreolham novamente...

Depois de uma hora, o carro chega à delegacia de Terrasini, uma cidade a poucos quilômetros do aeroporto da capital siciliana.

Lá Piera se encontra com Plazzi, com outra promotora, Alessandra Camassa, e com o procurador-geral, Paolo Borsellino.

Borsellino e seu colega Giovanni Falcone são dois dos juízes mais envolvidos na luta contra a máfia desde a década de 1980. E serão até a morte.

Juízes Giovanni Falcone e Paolo Borsellino representam para muitos italianos símbolos da luta contra máfia - Getty Images - Getty Images
Juízes Giovanni Falcone e Paolo Borsellino representam para muitos italianos símbolos da luta contra máfia
Imagem: Getty Images

Ambos são de Palermo, entendem muito bem a idiossincrasia da Cosa Nostra e estão desenvolvendo um novo sistema de investigação que conseguirá prender e condenar centenas de bandidos.

Será graças a suas investigações que a estrutura complexa da Cosa Nostra e as relações costuradas ao longo dos anos com o poder político e empresarial italiano serão descobertas.

Mas Piera, naquele tempo e naquela delegacia, não sabe de nada disso. Tampouco sabe quem é esse homem que está sendo apresentado a ela, que ela vê como alguém importante e a quem chama de "excelentíssimo", como se fosse um deputado.

Borsellino, afável, mas conciso, diz: "A colaboração com a justiça funciona assim: se a Sra. quer que prendamos aqueles que mataram seu marido, precisa nos contar tudo o que sabe, sem esconder nada. E se encontrarmos evidências de que o que a Sra. nos diz é verdade, então podemos parar aqueles que a Sra. acusa".

"Então a Sra. terá que comparecer diante de um juiz, repetir tudo na frente dos assassinos de seu marido, que podem estar lá, atrás das grades e que olharão para você com olhos cheios de ódio."

E termina com um aviso que se tornará profético.

"Se a Sra. decidir testemunhar, terá que sair daqui. Terá que arrancar a Sicília do seu mapa."

"Já me decidi", responde Piera a Borsellino. "Só preciso de três dias para fechar minha conta bancária, dizer adeus aos meus pais, arrumar tudo e ir embora com minha filha."

Três dias depois, na noite de 30 de julho de 1991, Piera está dormindo com a filha em um apartamento protegido pela polícia em Roma.

A partir desse momento, não será mais Piera Aiello. Seu nome e sua primeira vida aparecerão apenas nos complexos relatórios judiciais.

Agora ela é um testimone di giustizi (pessoa familiarizada com certos crimes relacionados ao crime organizado que colabora com a Justiça, figura que é reconhecida pela lei italiana desde 2001).

***

"Pouco antes de sair da Sicília, fui me despedir de Rita Atria", diz Piera, balançando as mãos no ar, com as unhas pintadas de esmalte rosa.

"Disse a ela: 'Não quero ser como sua mãe. Não quero ser uma viúva da máfia. Não quero ver os assassinos de seu irmão, os assassinos de seu pai, caminhar diante dos meus olhos.'

Tínhamos que colocar um basta em tudo isso. A nossa cidade se tornou um local de órfãos e viúvas. Não havia família que não tivesse algum ente querido assassinado", continua ela, com seu pequeno pingente com o símbolo da Sicília balançando no decote de sua blusa listrada.

"Estava cansada dessa vida. Estava cansada de ver como essas mulheres abaixavam a cabeça, como se vestiam com seu lenço preto de luto, como se ajoelhavam diante desse sistema de gângsteres."

"Contei tudo isso para Rita e repetia isso todas as quintas-feiras às três da tarde, quando ligava para ela de uma cabine telefônica em Roma."

***

Uma noite em outubro, alguém bate à porta da casa Atria.

Rita atende, não abre.

Um homem a exorta a fazê-lo: "Abra a porta!" - mas Rita não quer.

Ele se afasta da porta. Rita grita para ele ir embora. O homem se aproxima e sussurra: "Na vida você tem que falar pouco, porque senão ...".

No dia seguinte, Rita munida de sua mochila com seus livros escolares descansa no apartamento onde Piera e sua filha estão.

Ela também decidiu contar aos juízes tudo o que viu e ouviu em seus 17 anos vivendo em uma família de mafiosos.

As duas mulheres começam a listar, calcular, relacionar e detalhar tudo o que sabem.

Porque, como Piera repetirá para os promotores Camassa e Borsellino, "uma mulher sempre sabe o que seu marido ou filho faz".

"Esse período de convivência foi maravilhoso, estávamos recuperando nossa liberdade. Até então, nunca tínhamos sido livres para dar um passeio por conta própria ou ir ao cabeleireiro", diz Piera.

"Foram minhas 'férias em Roma'", ela sorri, piscando em alusão aos filmes protagonizados por Audrey Hepburn.

E ela continua me dizendo como sua felicidade não demorou para acabar.

***

Em 23 de maio de 1992, a máfia detonou 400 kg de explosivo na rodovia que liga o aeroporto de Palermo à cidade.

Naquele momento, um comboio de três carros estava passando, no qual viajavam o juiz Giovanni Falcone, sua mulher, a juíza Francesca Morvillo, e três acompanhantes.

No ataque, conhecido como "o massacre de Capaci", além dos corpos das cinco pessoas, foram destruídas as esperanças levantadas naqueles anos para derrotar a Cosa Nostra.

Essas mesmas ilusões foram enterradas 57 dias depois, em 19 de julho de 1992, sob os escombros de "a matança de via D'Amelio", quando um carro-bomba matou o juiz Paolo Borsellino e cinco guarda-costas quando ele visitava a casa de sua mãe.

Não foram apenas dois ataques contra inimigos da máfia. Foi a declaração de guerra da Cosa Nostra e seus padrinhos (Totò Riina, Bernardo Provenzano, Leoluca Bagarella, entre outros) ao Estado italiano.

Uma guerra que continuaria até o ano seguinte com ataques ao patrimônio artístico e cultural de Roma, Milão e Florença, e que causaria a morte de várias pessoas inocentes.

***

As notícias do ataque de Borsellino deixam Piera e Rita atordoadas e desorientadas.

A polícia entende a situação de ambas e decide levá-las para um local protegido na Sicília, perto da família de Piera. Mas, no último momento, Rita decide ficar em Roma.

Será a última vez que as duas mulheres se abraçam.

Em 25 de julho de 1992, Rita se lança no vazio do sétimo andar do apartamento na capital italiana para onde foi transferida "por segurança", disseram as autoridades.

"Meu coração não vive sem você", dizem as folhas escritas em uma parede.

Em seu diário, eles encontram a mesma frase: é dirigida ao juiz Borsellino.

Giovanna Cannova, sogra de Piera e mãe de Rita, não comparece ao funeral da filha.

Alguns meses depois, eles a verão no cemitério do vilarejo, destruindo com marretadas a lápide de sua filha.

Ela promete que, enquanto viver, no túmulo da família não haverá vestígios de sua Rita: sem foto, sem nome, nada. Porque ela era "infame".

Ela não quebrará sua promessa nos 20 anos restantes de sua vida.

***

"'Quando eles me disseram que uma das duas havia se jogado de uma sacada, pensei que fosse você', eu disse para Piera naquela noite", lembra à BBC News Mundo Alessandra Camassa, atual presidente do tribunal de Marsala.

Camassa nunca esquecerá aquele verão também. "Não se sabia quem seria a próxima vítima."

"Piera Aiello me confessou que a Sra. era a musa dela", digo a Camassa e acrescento: "Ela me disse que se não a tivesse encontrado, não seria a pessoa que é agora."

Camassa ri.

"Piera não ganhou nada ao fazer o que fez", responde, com seu suave sotaque de Trapani.

"Ela poderia ter seguido com sua vida e teria sido mais fácil para ela; tendo feito o que muitas mulheres sicilianas fazem, que são consistentes com os valores dos gângsteres."

Caso contrário, não seria possível explicar como conseguem transmiti-los de geração a geração.

Em vez disso, graças às revelações de Piera e Rita, em 1993, conseguimos levar 14 membros da máfia a julgamento e condená-los, alguns por assassinato".

Durante o julgamento, um homem arrependido revelou que as notícias do suicídio de Rita Atria foram recebidas com aplausos na prisão de Trapani.

***

"Nos meses seguintes à morte de Rita, eu morava em um hotel isolado, protegido pela polícia, sem nome. Era um vegetal", diz Piera, com o olhar fixo na parede atrás de mim.

"Foi então que decidi me isolar do mundo e entrar em um convento", acrescenta.

"Muita coisa aconteceu naqueles últimos dois anos e não queria saber de nada, descobrir nada. Não assisti ao noticiário por dois anos e meio".

O que Piera - dedos entrelaçados, os olhos voltados à mesa de fórmica - chama de "metamorfose" durou até 1995.

Durante esses dois anos e meio, ela deixou o isolamento apenas para participar de julgamentos.

Por outro lado, mesmo que quisesse, também não poderia ter ido a lugar algum, porque havia apagado sua identidade: Piera Aiello não podia mais existir, mas, ao mesmo tempo, não havia como substitui-la.

"Como você explica às pessoas que você não existe?", pergunta Piera.

"Não pude matricular minha filha de seis anos na escola. Se fosse ao médico, tinha que dar o nome de outra pessoa."

***

O limbo em que Piera vive sua segunda vida durará seis anos.

Fazia um ano que ela havia deixado o programa de proteção a testemunhas quando recebeu sua nova identidade, em 1997.

É assim que sua terceira vida começa: com um novo nome que quase ninguém sabe, em uma cidade que quase ninguém sabe.

A TERCEIRA VIDA: DUAS AÇÕES PARALELAS

Piera 3 - Kako Abraham/BBC - Kako Abraham/BBC
Imagem: Kako Abraham/BBC

A terceira vida de Piera é um jogo de "cara ou coroa" constante. Mas é ela, não o acaso, quem decide quando jogar a moeda e de que lado ela cai.

Com um novo nome, Piera se muda para um local protegido, começa a trabalhar, conhece um homem, se apaixona.

Dessa vez, não serão os pais dele que autorizarão o relacionamento, mas a polícia, encarregada de examinar suas novas interações sociais.

Uma vez obtida a aprovação, ela lhe revela sua outra identidade, ele não se sente intimidado e, em 1999, eles se casam.

Piera dá à luz a outra filha, a quem ela decide não contar sobre seu passado ou o nome com o qual viveu.

Quando aquela garota descobrir quem era sua mãe, quem ela é ou quem será - e dessa vez, sim, será obra do acaso - ela estará prestes a completar a maioridade e Piera, a começar sua quarta vida.

Mas, no momento, Piera é apenas sua mãe.

Piera começa, então, a contar, agora com seu nome real, suas experiências em reuniões públicas cada vez mais frequentes.

É o que ela define como sua "missão": visitar escolas em todas as regiões da Itália para explicar aos alunos como é a cara da máfia. Ironicamente, contudo, ela não pode mostrar a sua.

E, em 1995, Piera começou a se envolver no movimento civil contra a máfia através da Associação Rita Atria, fundada um ano antes por Nadia Furnari, uma ativista política siciliana.

***

Piera conheceu Furnari quando ainda estava "se livrando do mofo no convento", confessa.

"Imagine que naqueles anos eu não sabia quem era Berlusconi. Eu o vi na TV e ele parecia um tipo até simpático", ela ri, já em sua quarta vida, a de deputada do Movimento 5 Estrelas.

Esse movimento político, fundado em 2009, sempre criticou Berlusconi por sua proximidade pessoal e política com pessoas ligadas ao ambiente da máfia.

"Isso mostra que naquela época eu ainda não entendia nada de política", diz ela, rindo.

***

Nadia Furnari a acompanha em suas palestras, a apresenta ao mundo do ativismo antimáfia, a ajuda a terminar o Ensino Médio e atua como porta-voz quando Piera não pode se movimentar por razões de segurança.

As duas mulheres também estão envolvidas em uma campanha para aprovar uma lei que protege testemunhas e que finalmente entrará em vigor em 2001.

A cumplicidade das duas mulheres é tal que, em 2008, Piera chegou a presidir a Associação Rita Atria, instituição da qual acabará saindo três anos depois.

Mesmo assim, em suas memórias, assinadas com seu primeiro nome e publicadas em 2012 junto com o jornalista Umberto Lucentini, ela se lembra desse episódio assim:

"Nadia me devolveu o desejo de viver no sentido mais profundo da palavra. Isso me mostrou que há uma possibilidade de mudança na Sicília."

***

"Caro Angelo,"

"Sou Nadia Furnari, a pessoa que acompanhou os passos de Piera Aiello por 17 anos... há nove anos, nossos caminhos divergiram, tanto pessoalmente quanto em relação à associação."

Quando recebo esta resposta à minha solicitação de entrevista para essa reportagem, minha primeira reação é de espanto. Mas imediatamente surge a curiosidade de saber mais sobre os motivos dessa ruptura.

"Caro Angelo", Furnari responde em um segundo e-mail: "Pessoalmente, decidi não falar mais sobre Piera Aiello. Se você quiser conhecer nossas atividades como associação e/ou nossa opinião sobre Rita Atria, explicarei com prazer, mas a conversa não será relacionada a Piera Aiello."

Concordamos em conversar por telefone na semana seguinte.

Sua voz é gentil e vibrante. Ela me explica as dificuldades envolvidas na luta contra a máfia em um país onde, por alguns anos, quem teve a coragem de fazê-lo era considerado uma pária e não um herói glamoroso da justiça.

Ainda mais se tivessem rosto e voz femininos.

Além disso, Furnari nem quer ouvir falar de heróis.

"Não há heróis. Falcone, Borsellino, os policiais e jornalistas que a máfia matou não pensaram em ser heróis, eles só queriam fazer o seu trabalho."

"Torná-los heróis faz com que o restante das pessoas não se sinta responsável. Em vez disso, queremos que cada um lute contra a máfia que está dentro de si, que cada um saiba de que lado ficar sem rupturas ou meias palavras", diz ela com firmeza.

Nesse ponto, a conversa recai sobre Piera. Furnari, com sua voz gentil e vibrante, me garante que ela não despreza sua antiga amizade.

Mas ela me deixa claro novamente: a única coisa que dirá sobre Piera é que discorda totalmente de suas decisões políticas no Movimento 5 Estrelas. Furnari não as considera consistentes com seu passado.

Então ela se despede e nossa conversa chega ao fim.

Dias depois de conversar com ela, entrevisto Anna Puglisi, presidente da histórica Associação das Mulheres da Sicília que lutam contra a máfia. Ela também me avisa que não vai falar sobre Piera.

Puglisi reconhece sua coragem em denunciar a máfia - "Ela foi a primeira a fazê-lo!" - mas acredita que o que Piera busca agora explorar seu passado em troca de visibilidade.

"Nem a Associação Rita Atria", diz ela sem rodeios, "nem Nadia Furnari lhe daria o que ela aspirava ter".

***

Naquele escritório repleto de fumaça de cigarro onde Piera me conta a história - a história dela - que ela contou inúmeras vezes, a conversa recai sobre seu relacionamento com Furnari.

"O que aconteceu?", pergunto a ela.

Piera estende as mãos sobre a mesa. Com uma delas, pega o maço de cigarros e, com a outra, leva um à boca.

"Sempre serei grata a Nadia", diz, "porque ela e a associação me tiraram do limbo", acrescenta, batendo o cigarro no cinzeiro para livrar-se das cinzas.

"Só que", ela dá uma tragada, "sou um espírito livre e, quando você faz parte de uma associação, precisa seguir algumas regras".

Piera dá uma baforada em direção à janela.

"Me sentia oprimida, digamos... controlada", ela se recosta sobre sua poltrona. "E nesse período, o que queria era abrir minhas asas, decolar", dá mais uma tragada, "e queria fazer isso sozinha."

"Sou assim", Piera faz uma pausa, "um cavalo sem freio."

A QUARTA VIDA: SER PIERA NOVAMENTE

Piera 4 - Kako Abraham/BBC - Kako Abraham/BBC
Imagem: Kako Abraham/BBC

Piera ainda não sabe, mas o acaso decidiu que esse jogo de cara e coroa de 20 anos está prestes a terminar.

"Era uma tarde de verão em 2017", ela começa a me dizer, sem esconder certo alívio em suas palavras.

"Tínhamos acabado de reformar o apartamento protegido onde morava com minha família e queria decorar algumas paredes."

Um dia, meu marido e eu estávamos arrumando o ático e, encostados na parede, havia alguns quadros que ele havia me trazido da casa dos meus pais na Sicília.

Eram quadros que eu pintava quando jovem, quando ainda me chamava Piera Aiello.

De repente, minha filha aparece e começa a dizer: 'Por que você quer comprar quadros se há tantos aqui?' E rasga o invólucro de um deles.

Imediatamente, vê uma assinatura.

"Você quer me contar algo?", minha filha me perguntou.

"Ela estava prestes a completar 18 anos e decidi que havia chegado a hora de dizer a verdade."

"'Como você fez isso? Como você conseguiu manter esse segredo por tanto tempo?', minha filha me pergunta. 'De repente, tenho uma mãe que todo mundo conhece e outra que eu conheço, completamente diferente', acrescentou ela."

Nesse escritório onde passa várias horas de sua quarta vida, não há foto de ninguém: nem de suas filhas, nem de seu marido, nem dela.

"Como a Sra. conseguiu manter um segredo tão bem guardado por tanto tempo?", pergunto-lhe novamente.

"É como se eu desligasse um interruptor", responde ela. "Não sou mais essa pessoa, mas a outra", explica.

Depois de alguns meses, começará a quarta vida de Piera.

No início de 2018, o Movimento 5 Estrelas quer que ela se candidate nas eleições para o Parlamento italiano, que seriam realizadas em março daquele ano.

Sua resposta é positiva, mas com duas condições:

"A primeira é que eu seja candidata com meu nome verdadeiro, Piera Aiello", diz ela categoricamente.

A segunda é que ela se lance candidata por Marsala, a mesma província da Sicília onde nasceu Matteo Messina Denaro, considerado pelas autoridades italianas o atual chefe da máfia siciliana e um fugitivo da justiça desde 1993.

Mas nessa corrida, ela corre uma desvantagem significativa: Piera não pode fazer campanha em locais abertos, nem ser fotografada.

Para todos, ela é "a candidata sem rosto" e o lenço preto que cobre seu rosto sempre que faz um discurso se torna o símbolo de sua campanha eleitoral.

"Muitas pessoas me olharam como se eu fosse uma alienígena", lembra ela, com um sorriso malicioso.

Um mês e 77.950 votos depois, Piera Aiello inicia sua quarta vida, com seu nome e como deputada da República, a primeira testemunha de justiça a entrar no Parlamento italiano.

Desde 5 de março de 2018, seu objetivo, explica ela, permanece o mesmo: trabalhar na Comissão Parlamentar contra a máfia para melhorar as condições das testemunhas de justiça e de suas famílias.

"O Estado não está, por assim dizer, muito atento às suas necessidades. Porque quando o tempo das denúncias, dos julgamentos, do interesse da mídia passa, o nível de proteção cai", denuncia ela, enquanto sua voz se torna grave.

"Por outro lado, a Cosa Nostra, a 'Ndrangheta, a Camorra, nunca esquecem você."

De repente, o celular vibra na mesa de fórmica. É sua escolta, que pergunta quando ela estará livre.

Enquanto conversam por alguns minutos, uma lembrança que Piera descreve em suas memórias vem à mente.

É verão de 1991 e fazia algumas semanas que estava denunciando aos promotores os segredos da máfia que ouviu durante anos ao lado de seu marido.

Durante esses dias, os companheiros de sua solidão são incerteza, angústia e medo.

Um dia, ela começa a chorar na delegacia. Piera não quer continuar, quer rasgar os papeis de suas declarações, quer voltar para sua vida, seja ela o que for.

O juiz Paolo Borsellino a abraça, a conforta e a empurra levemente em direção ao espelho.

"O que você vê?", pergunta ele.

"Eu vejo uma garota com um passado complicado, um presente inexistente e um enorme ponto de interrogação como futuro."

"Em vez disso, vejo...", diz Borsellino, "vejo uma garota com um passado complicado que conseguiu se rebelar. E vejo um futuro de felicidade."

Assim que acaba de falar com sua escolta, mencionei essa anedota e perguntei a ela como se vê diante do espelho:

"Quem é Piera Aiello agora?", pergunto.

"Piera Aiello é uma mulher que vem de 30 anos de luta contra a máfia, que fez isso do anonimato", responde ela.

E Piera continua: "Piera Aiello ainda é a mesma mulher de sempre, mesmo que agora seja política".

Mas o que ela vê naquele espelho já me foi explicado, entre lembranças e cigarros, entre depoimentos e olhares firmes.

"Acima de tudo, sou Piera Aiello. Porque, embora você entre no sistema de proteção a testemunha e eles mudem seu nome, seu primeiro nome, o que seu pai lhe deu, ele nunca morre. Ninguém pode apagá-lo.

E eu sou uma Aiello e, como Aiello, quero morrer."

*Edição: Leire Ventas / Ilustrações: Kako Abraham