"Passei a infância em uma seita que incentivava o abuso de crianças"
Quando a britânica Verity Carter viu seu pai, Alexander Watt, ser condenado por ter abusado sexualmente dela e de outra criança nos anos 1980, ela passou a ter esperança de que outras pessoas venham à público para expor os crimes de membros da seita Children of God (Crianças de Deus), na qual ela cresceu.
Carter, de 38 anos, diz que sofreu abusos sexuais desde os quatro anos de idade de diversos membros da seita, incluindo seu pai. Ela afirma que crescer em meio ao grupo, que incentivava a prática, foi um "inferno na terra".
Watt foi condenado em fevereiro deste ano depois de confessar os crimes, cometidos na Escócia. A sentença determinou que ele cumpra 240 horas de serviço comunitário e compareça a um curso de reabilitação. Ele também foi incluído na lista de criminosos sexuais.
Carter diz que durante anos ouviu que era louca e que o abuso nunca havia acontecido. "Só de ter o fato reconhecimento já é uma grande coisa", afirma. "(Mas) para mim, emocionalmente, a questão não ficou totalmente resolvida. Eu esperava mais".
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Carter diz que o pai não foi o único que a molestou quando ela era pequena. "Coisas muito piores foram feitas comigo por muitos outros."
Abuso sexual de crianças
A seita Meninos de Deus começou no Estados Unidos no fim dos anos 1960, fundada pelo americano David Berg. O grupo cresceu e, no fim dos anos 1970, alegava ter 10 mil membros em 130 comunidades ao redor do mundo.
Os atores de Hollywood Rose McGowan e Joaquin Phoenix nasceram em famílias que faziam parte da seita.
Berg dizia aos seus seguidores que Deus é amor e amor é sexo, então não deveria haver limites em termos de idade ou de tipo de relacionamento.
"A seita ativamente incentivava práticas sexuais com crianças a partir dos dois ou três anos", diz Carter.
Tanto o pai quanto a mãe de Verity Carter eram participantes ativos do grupo quando ela nasceu.
Além do abuso sexual, Carter diz que era constantemente espancada por qualquer transgressão.
"Era um inferno na terra. Mas aconteceu pouco a pouco, e muitos adultos não tinham percebido a quão extremo (o grupo) havia se tornado até ser tarde demais", afirma ela.
O pai dela saiu da seita quando ela tinha nove anos, mas sua mãe continuou dentro do grupo com Carter e seus irmãos.
No início, a família morava em um pequeno apartamento, mas tinha uma vida parecida com a dos membros que viviam em comunidade. "Não tínhamos contato com o mundo exterior", diz Carter. "Não tínhamos TV, não ouvíamos música nem tínhamos acesso à cultura. Não tínhamos ideia de como o mundo funcionava."
Carter não recebeu nenhuma educação formal. Mas aprendeu a mentir para quem era de fora - especialmente para o serviço social.
"A gente sofria graves consequências se não sorrisse e não dissesse exatamente o que mandavam", diz ela. As crianças eram ensinadas que coisas horríveis iriam acontecer com elas se saíssem de casa.
"Eu não estava confortável com as coisas que eram feitas comigo. Se questionasse, eu apanhava ou ficava de castigo", conta. "E como não conseguia ficar quieta, era sempre punida."
Fuga
Carter deixou a seita por volta dos 15 anos, em uma época em que "já não me importava se algo horrível acontecesse comigo, se eu morresse no 'mundo exterior'. Porque eu já queria morrer, então que diferença isso iria fazer?", diz ela.
No começo ela foi morar com o pai, que gastava bastante dinheiro com ela. "Acho que ele estava tentando compensar o passado", diz.
"Eu perguntei para ele sobre o que tinha acontecido e ele pediu desculpas e disse que era tudo culpa dos ensinamentos da seita."
Quando ela tinha 16 anos, os dois brigaram e Carter decidiu sair de casa.
Ela diz que teve depressão e pensamentos suicidas, além de pesadelos e insônia. Durante muito tempo, teve medo de falar a respeito, já que seus irmãos ainda estavam dentro da seita.
Sete anos atrás ela decidiu vir a público e contar o que aconteceu em sua infância. O caso criminal revelou mais sobre os estupros cometidos por seu pai do que ela imaginava.
"Ele não reconheceu o mal que causou com seus atos. Parecia não entender o impacto que teve."
Muitos casos
Desde os anos 1970, dezenas de outras pessoas cujos pais eram membros do grupo relataram os abusos sexuais que sofreram na infância.
Entre elas estão duas netas do criador da seita, David Berg. Uma delas falou sobre os abusos em um processo judicial e outra, em uma rede de televisão americana.
Um dos casos mais dramáticos da seita é o de Ricky Rodriguez, filho da segunda mulher de Berg, Karen Zerby. Ele foi molestado constantemente quando era pequeno e a seita chegou a publicar uma revista relatando os episódios como exemplo de criação de filhos.
Em 2005, aos 29 anos, ele se encontrou com uma das babás envolvidas nos abusos sexuais que sofreu na infância e a matou a facadas. Em seguida, se suicidou.
De acordo com uma reportagem da época do jornal The New York Times, Rodriguez fez um vídeo pouco antes do crime dizendo que se via como um "justiceiro buscando vingança" para crianças como "ele e suas irmãs, que foram vítimas de estupros e espancamentos".
Além de incentivar o estupro de crianças, os textos de Berg tinham conteúdo racista e antissemita.
Em 1986, depois de diversos escândalos envolvendo estupros e abusos de crianças, a Igreja revogou os ensinamentos de Berg quanto à sexualidade e proibiu o contato sexual de adultos com menores de idade.
David Berg morreu em 1994, aos 75 anos, e sua segunda mulher se tornou a líder do culto, posto que ocupa até hoje.
Ativos até hoje
Verity Carter não fala com sua mãe, mas diz ter um bom relacionamento com os quatro irmãos e duas irmãs, que depois de adultos saíram da seita.
A mãe de Carter participa até hoje do movimento, que mudou de nome e, desde 1978, se chama A Família Internacional.
Apesar de prisões de líderes e diversos processos criminais contra membros do grupo em países como México, Reino Unido e Estados Unidos, a seita continua com suas atividades em diversos países, incluindo o Brasil. A Família Internacional está no país desde 1973.
Procurada pela BBC News Brasil, A Família Internacional (AFI) disse que sofreu "uma reestruturação monumental em 2010, a qual levou ao desmantelamento de sua estrutura organizacional e lares comunitários".
"Os membros atuais são frouxamente afiliados através do site comunitário. A organização atualmente existe como uma pequena comunidade virtual com menos de 1,9 mil membros dispersos em 80 países", disse a entidade.
A porta-voz da entidade, Carol Cunningham, afirmou que não conhece a história pessoal de Verity Carter, mas pode dizer que "o pai dela foi excomungado da Família há quase três décadas, em 1989".
"A AFI expressou suas desculpas em várias ocasiões a qualquer membro que sinta que sofreu danos durante a sua afiliação, as quais também são estendidas a Verity", afirmou a porta-voz.
A entidade também diz que "embora tenha pedido desculpas a ex-membros em diversas ocasiões por qualquer dano sofrido, real ou sentido, não dá credibilidade a histórias de abusos institucionalizados, que não têm nenhuma base em fatos."
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