Topo

Colômbia: Grupos violam direitos de crianças LGBTQIAP

AzMina
Imagem: AzMina

Natália González-Gil

01/08/2023 04h00

Luna tinha cinco anos e guardava seu cabelo cortado no bolso das calças. Tinha sido obrigada a cortá-lo por pressão da escola. A menina se recusa a falar desde que saiu do cabeleireiro com a mãe, Rocío. Na sala de estar, Luna quebra o silêncio: "Mamãe, se não posso ser menina, mais vale morrer". Luna apresenta-se como "uma menina trans, uma referência para as infâncias trans". Atualmente, tem 12 anos e vive em Bogotá, na Colômbia.

Em uma tarde de sábado, em junho de 2023, Luna se preparava para uma apresentação artística da marcha LGBTQIAP+ na zona sul da capital colombiana. Usava um vestido comprido, com as cores da bandeira trans, e um cinto com estampa de onça. Na Casa Sebastián Romero, um centro de atenção pública à diversidade sexual, seu irmão Juan arrumava o longo e liso cabelo castanho da menina. À medida que Luna caminhava, os ativistas a cumprimentavam com entusiasmo: "Luz da minha vida, Luninha!"

Nos primeiros anos de sua vida escolar, Luna foi vítima de agressões e violência por parte de professores, diretores de escola e encarregados de educação. A principal causa: o reconhecimento da sua identidade e expressão de gênero.

Discurso de ódio nas escolas

A lei contra o bullying escolar, promulgada em 2013, é um precedente na garantia dos direitos dos jovens nas escolas colombianas. Embora não seja direcionada especificamente para dissidentes de sexo e gênero, essa norma é a primeira a abordar diretamente o bullying e a reconhecer os estudantes como sujeitos de direitos sexuais e reprodutivos. Segundo a legislação, até 2014, todas as escolas deveriam ter atualizado os seus manuais de convivência escolar, mas algumas apenas mudaram as palavras, sem fazer alterações significativas.

Justamente em 2014, no Ginásio Castillo Campestre, ocorreu um dos casos mais conhecidos de bullying contra um estudante gay na Colômbia. Sergio Urrego foi impedido de se relacionar com outro aluno, exposto publicamente, perseguido, intimidado e denunciado por "assédio". Naquele mesmo ano, Sérgio suicidou-se.

Após a morte do jovem, Alba Lucía Reyes, sua mãe, apresentou uma ação de tutela à Corte Constitucional para garantir que o caso do filho não se repetisse. Em resposta, em 2015, o Tribunal colombiano ordenou que o Ministério da Educação revisasse todos os manuais de convivência do país, para garantir que fosse respeitada explicitamente a orientação sexual e a identidade de gênero.

Desinformação e revisão de manuais

Em 2016, o Ministério da Educação da Colômbia construiu uma cartilha sobre ambientes escolares livres de discriminação, fruto de um acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), mas que nunca foi aprovado pelo governo colombiano. Em resposta à ordem da Corte Constitucional no caso Sergio Urrego, o Ministério enviou às escolas um documento com perguntas orientadoras para que cada instituição modificasse de forma autônoma seus manuais.

Setores conservadores espalharam conteúdos falsos. Publicações de histórias em quadrinhos de pornografia gay tornaram-se virais, alegando que esses materiais eram as cartilhas do ministério colombiano. Políticos, como a então deputada da região de Santander Ángela Hernández, fizeram campanha contra a revisão. Ela afirmava que o ministério estava incentivando a colonização homossexual das escolas. O então vereador evangélico em Bogotá, Marco Fidel Ramirez, promoveu marchas nacionais para que "as crianças não fossem confundidas com a ideologia de gênero".

Essa campanha de desinformação ocorreu em 2016, durante a votação do plebiscito que endossava os Acordos de Paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), e a polarização em relação à diversidade de gênero tornou-se mais aguda. A batalha eleitoral desse plebiscito foi uma medida da força política da direita colombiana, e dos setores ultrarreligiosos que defenderam a não aprovação dos acordos de paz, argumentando ser uma luta contra a "ideologia de gênero".

"Aparentemente, os Acordos de Havana foram escritos com as mesmas mãos, tinta e papel usados para escrever essas cartilhas de ambiente escolar", disse Hernández em sua página no Facebook. Outro exemplo é o tweet de Ramírez sobre o fracasso da votação do 'sim' para a aprovação dos acordos: "A Colômbia votou NÃO ao infame acordo final com as FARC. Os evangélicos exigem um novo acordo sem a corrupção da ideologia de gênero".

Uso da ideologia de gênero

José Fernando Serrano Amaya, pesquisador da Universidade de Sydney, escreveu em um artigo que "entre agosto e novembro de 2016, o termo 'ideologia de gênero' esteve no centro de debates fundamentais da história recente da Colômbia". Para ele, embora não seja possível estabelecer uma relação causal entre a vitória do 'Não' no plebiscito e o aparecimento desse termo na agenda pública, a questão foi definitivamente relevante para o processo de tomada de decisão dos cidadãos colombianos.

Outros especialistas, como Marcela Sánchez Buitrago, diretora executiva da Colombia Diversa, entendem a "ideologia de gênero" como uma estratégia de manipulação para alcançar vitórias eleitorais. No entanto, investigadores como José Fernando Amaya discordam, por entenderem o termo como como instrumento permanente de controle político, que instalou na Colômbia processos globais contra a igualdade de gênero e os direitos LGBTQIAP+.

Exemplo disso foi a cúpula realizada por líderes religiosos 10 dias após a vitória do "não" sobre os acordos de paz. Uma das oito reivindicações que eles fizeram para ajustar os acordos referia-se ao episódio da cartilha de ambiente escolar. Este grupo destacou o "direito de educar as crianças", e exigiu autonomia para as escolas e para os pais, para ensinarem conforme seus princípios.

Disputa de direitos e ataques

Em 2017, um ano depois da campanha antigênero no plebiscito, uma professora disse à mãe de Luna: "Você teve um menino e tem que criá-lo como menino. Se não fizer, é pecado. Vamos colocar a criança numa corrente de oração".

Luna usava um lindo vestido e, enquanto corria, caiu. A professora veio ajudar: "Oh, é o Diego, o que é que faz usando um vestido? Meu Deus!". E a deixou cair no chão de novo. A mãe, Rocío, procurou a direção da escola para denunciar as agressões, mas ouviu da diretora: "Você é quem deveria procurar ajuda. A professora é uma excelente pessoa, é cristã".

Na Colômbia, escolas e professores têm autonomia para apresentar conteúdos, programas e avaliações. Existem apenas diretrizes curriculares, não ordens. Assim, algumas unidades decidem ignorar os direitos básicos das crianças trans e diversas. Segundo a mãe, a Secretaria de Educação de Bogotá orientou que a escola garantisse os direitos fundamentais da menina, explicando que deveriam reconhecer os pronomes femininos e não reprimir sua expressão de gênero. A escola recusou. Proibiu que a chamassem de Luna e propôs uma votação na comunidade escolar para saber se concordavam com a transição dela.

Embora a liberdade de educação na Colômbia seja um direito, há limitações, pois não se sobrepõe a outros princípios constitucionais fundamentais. Quando Rocío pediu a garantia dos direitos de Luna à liberdade de expressão, a escola respondeu que a identidade de gênero da menina violava os direitos das outras crianças e dos encarregados pela educação.

"Não se meta com meus filhos"

Um dos argumentos contra a "ideologia de gênero" utilizados por figuras políticas, conservadoras e religiosas é que, quando o Estado exige o respeito pelas diversas orientações e identidades, viola os direitos dos pais, das instituições de ensino e das crianças.

Luna agora frequenta uma escola pública que não comete as agressões e violências da anterior, embora continue a sofrer bullying e cyber-bullying. Recentemente, a menina buscava imagens suas na internet e se deparou com um grupo em que as pessoas comentavam: "Temos que matá-la. Temos que matar a mãe dela", "isto se resolve com um tiro", "primeiro tínhamos que mandá-la para Deus".

Os ataques a pessoas transgênero não são apenas simbólicos, também levam a homicídios que são vistos nas estatísticas. De acordo com dados da Colômbia Diversa, em 2021 - últimos disponíveis -, 58 pessoas trans foram assassinadas no país, o número mais alto em três anos. Esses crimes aumentaram após os acordos de paz de 2016, com a campanha antigênero, e não diminuíram desde então.

Centros de diversidade

Rocío, mãe de Luna, encontrou ajuda em um dos dois Centros de Atenção Integral à Diversidade Sexual e de Gênero (CAIDSGs) da capital colombiana, que garantiram o acompanhamento psicológico da menina. A unidade encaminhou o caso para o Grupo de Ação e Apoio a Pessoas Trans (GAAT) e estabeleceram ligações com instituições públicas.

Os CAIDSGs são espaços financiados pela Prefeitura de Bogotá para fortalecer os exercícios de garantia dos direitos à diversidade sexual e de gênero. Segundo Juli Rosero, Conselheira Consultiva para as Mulheres Lésbicas e Bissexuais da cidade, os movimentos e ativismo LGBTQIAP+ promoveram a criação de instituições, entidades e diferentes instâncias (de participação). "Uma vez criadas essas instituições, elas promovem muitas ferramentas e estratégias na mesma linha de garantia de direitos".

Prestes a completar 12 anos, Luna faz parte agora dos ativistas LGBTQIAP+ de Bogotá, a partir de frentes artísticas, políticas e educativas. Rocío coordena o grupo "Família" do GAAT e trabalha com a Secretaria de Segurança de Bogotá. A estratégia é monitorar o cumprimento dos direitos da população sexualmente divergente.

Após contar a sua história à reportagem, Luna quis deixar uma mensagem: "Que as crianças como eu se aceitem, que sejam fortes, que não sejam moldadas para agradar aos outros. E para os pais: aceitem seus filhos e não tentem moldá-los para mostrar aos outros o que eles não são. Sejam carinhosos e não os maltratem."

*O referido Liceu foi contactado por Andariegas, responsável por esse texto, para indagar sobre as suas ações contra as diversas identidades de gênero de seus alunos, mas até ao momento desta publicação não houve resposta.