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Marina Santa Helena

A modelo sumiu: como marcas de vanguarda estão "desmaterializando" a moda

Modelos da coleção apresentada por Anifa Mvuemba - Reprodução/Instagram
Modelos da coleção apresentada por Anifa Mvuemba
Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

01/08/2020 04h00

Anifa Mvuemba "quebrou a internet" no final de maio, quando lançou sua nova coleção em um desfile com renderizações 3D no lugar de modelos. Talvez você se lembre das imagens, com as roupas se movimentando sem um corpo visível, o que despertou muitas discussões sobre os rumos da moda, novas tecnologias e até algumas críticas.

Chamada de Pink Label Congo, a coleção teve como primeira peça um minivestido plissado batizado de Kinashaa, em referência à capital da República Democrática do Congo. "O vermelho representa o sangue, o sofrimento e a opressão pelos quais o povo congolês passou", disse a designer à edição britânica da revista Vogue. "O azul é a paz e o amarelo representa a esperança e o futuro do Congo."

Na época do lançamento, muito se comentou também sobre como a coleção de Anifa que é natural do Congo, propunha uma metáfora para falar da invisibilização que muitas vezes paira sobre pessoas de pele escura. E foi exatamente o que aconteceu com a estilista em um artigo no site da Forbes.

Duas semanas depois do desfile, a publicação divulgou uma matéria em que afirmava que a startup Bigthinxs estava criando o primeiro desfile de moda 3D do mundo. O texto gerou revoltas nas redes sociais, onde a história foi vista como outro exemplo do apagamento generalizado das contribuições das mulheres negras para as artes e a cultura e, após muitos protestos, a Forbes alterou e excluiu o artigo.

A simples existência de Anifa é uma prova de resistência. Nascida em um país de herança colonial recente, muito marcado pela guerra, a designer é autodidata. Seus primeiros pedidos chegaram na famosa divulgação boca a boca e depois começaram a aparecer via DM no Instagram.

Em 2012, ela lança a marca Hanifa, que em 2016 passa a apresentar um conceito mais elaborado, pensado para mulheres com curvas. Até março de 2018, a estilista ainda estava costurando e fazendo tudo sozinha. As vendas começaram a expandir quando as peças foram vestidas por celebridades como Kelly Rowland e Kylie Jenner, e então ela passou a fabricar em escala. Em 2019, a Hanifa já havia faturado US$ 1 milhão e, com a coleção mais recente, as vendas triplicaram.

Sei que é uma história que já foi muito falada e que é uma coleção lançada há alguns meses. Mas quis trazer o assunto de volta porque traz tanta, mas tanta coisa valiosa a ser discutida e apontada, tanta coisa que tem muito a ver com inovação, com ótimas propostas de mudanças, ou seja, com o futuro da moda.

Nesse contexto de pandemia dá para analisar alguns pontos importantes sobre como a moda tende a usar da tecnologia e da criatividade para pensar o futuro.

Uma grande possibilidade de se fazer isso de forma simples é contar uma história. Anifa escolheu abrir seu desfile com um mini documentário sobre a situação do Congo, sua grande inspiração. Mais recentemente, vimos outras grandes marcas fazendo o mesmo.

Por exemplo, o "desfile" mais recente da linha masculina da Dior que aconteceu no último dia 13 de julho, também foi online e trouxe a arte de Amoako Boafo, para a estética da marca, numa parceria superinteressante.

Tanto no caso da Hanifa, quanto no caso da Dior, o storytelling ganhou mais relevância do que aquele modelo de passarela, pois antes de mostrar as peças em si, a história por trás se tornou ainda mais importante. Nos dois casos a forma de narrativa escolhida fortificou as coleções.

Além dessa descontextualização na forma de "fazer desfile" - aliás, quem disse que desfile tem que ter somente aquele formato?! - as duas marcas resolveram se desmaterializar, criando um movimento de vanguarda e entendendo que a pandemia trás esse novo lugar onde a materialidade é um problema de assepsia.

Outro ponto importante que designers novos e com olhares mais contemporâneos criticam é a necessidade desse calendário de moda por estação. Com a Pink Label Congo, Anifa desconstrói essa ideia e toma partido na discussão. Nos últimos meses, em meio a muitas conversas sobre reiniciar o sistema da moda como um todo, grandes marcas como Gucci e YSL anunciaram que também iam seguir seu próprio cronograma.

Essa pode ser considerada uma resposta ao excesso e rapidez no fluxo lançamentos, mas as barreiras deixam de ser claras por dois motivos: a de inclusão do hemisfério sul na cadeia de consumo internacional e dos obstáculos climáticos que tiram a importância de estações bem definidas. Considerando tudo isso, a criatividade de Anifa se destaca.

Ao mostrar uma coleção inovadora, de qualidade, lançada em formato pioneiro, que fala sobre o Congo, sua mãe - enquanto mulher preta, sobre a necessidade de fazer roupas para mulheres reais, a designer coloca muito de sua própria história em seu trabalho e isso é inovação em seu estado mais puro.

O que vemos nela é a potencialidade empreendedora millennial, de uma designer jovem, negra e que realmente tenta ver o mundo por uma lente muito própria. O casamento da moda com a tecnologia - que muitas vezes se restringe aos processos de fabricação das grandes empresas de moda - é facilmente absorvido pelo olhar fresh de Anifa.