Maria Ribeiro

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Opinião

Assim como eu, Priscilla também demorou para perceber os cartões amarelos

Fui ver "Priscilla" meio no escuro. Mentira, que eu sou fã da Sofia Coppola. E vejo, como criança com ídolo de TV —quer dizer, agora seria da internet— absolutamente tudo o que ela faz. Gosto das suas falas, das suas roupas, da sua reserva, do seu jeito de se colocar no mundo.

Sabe aquelas pessoas distantes que você acompanha de perto? Quase como stalker? A mina da fila da frente do balé? Que você sabe que sempre vai acertar a coreografia?

Quando estreou como diretora, em "Virgens Suicidas", foi como se um véu tivesse sido retirado da minha existência como expectadora de cinema. Claro! Era uma mulher falando de outra mulher. No caso, de outras mulheres. E isso mudava tudo. Não que ela tenho sido a primeira, não foi. Mas, a mim, Sofia tocou de forma inédita. Pelo que mostrava, mas principalmente pelo que escondia.

Silêncios, portas de armário com colagens de fotos, risos constrangidos diante dos meninos, escovas de cabelo diante de dramas com penteados, revistas de moda, coleções de qualquer coisa, esperas, portões, confinamento, ansiedade, insegurança, praticamente um manual feminino de comportamentos dos anos 80.

E dos 90, 2000...De antes e de sempre. Por que a verdade é que há uma solidão bem específica que só acomete quem se reconhece mulher, e que deve, portanto, ser contada por quem manja do assunto.

Parece óbvio, mas, há vinte anos —e isso foi ontem e, ao mesmo tempo, há um século—, eu não pensava nem em feminismo, nem em representatividade. Ao contrário. Me orgulhava da minha trajetória de amiga dos meninos, de filha do meu pai, parceira do meu irmão, atriz do Domingos Oliveira, documentarista do Los Hermanos.

Minha principal identidade era a de alguém que se sentia, desde sempre, muito à vontade no universo masculino. E que se espelhava em figuras que reverberavam esse universo em suas obras cinematográficas.

Vi, em décadas de devoção à sala escura, caixas completas do Woody Allen, Kubrick, Spielberg, Truffaut, Spike Lee, Hitchcock, Tarantino, Spike Jonze, Wes Anderson. E pra não ficar só nos gringos, também posso dizer que zerei Glauber Rocha, Kleber Mendonça e Eduardo Coutinho —gente, aliás, que eu sigo adorando.

De uns tempos pra cá, no entanto, tenho batido um ponto firme em obras lideradas por mulheres. E nem é por ativismo, mas, sim, por interesse. Pra encontrar outros quartos que façam companhia ao meu, e, quem sabe assim, junto, achar as chaves da rua, da fala, da coragem, da autonomia.

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Foi assim com "Priscilla", que estreou no Brasil agora no último dia 4 —e olha que eu não sabia absolutamente nada sobre a viúva do Elvis Presley. Acontece que isso —estamos falando de gente como Elvis e Priscilla Presley —nem importa tanto.

Assim como em Maria Antonieta, ou Encontros e Desencontros, a fama, o dinheiro, o cenário e os superlativos dos personagens são, nos roteiros de Sofia, detalhes charmosos, porque os temas da diretora poderiam estar em uma casa comum, de uma vizinha próxima, de uma tia distante, de uma foto em um álbum da sala —sua, ou da sua mãe.

Priscilla tinha 14 anos quando conheceu o popstar de Love Me Tender. Nos seis anos em que passaram juntos, ela passou por todo tipo de violência, e demorou, como eu muitas vezes também demorei, a identificar os cartões amarelos.

Comentou sobre algo que não gosta em sua aparência? Prefere que você use determinadas cores? Uma maquiagem mais leve? Uma unha mais discreta? Um biquini maior —ou menor? Gosta das suas amigas "mais calmas"? Ou, de preferência, nenhuma?

Como disse a youtuber JoutJout em um vídeo de 2016 —que eu nunca mais esqueci— "não tira o batom vermelho!". Nunca. Além disso, também recomendo fortemente os ingressos pra ver histórias de mulheres, de preferência escritas e dirigidas por elas.

Como acontece em Priscilla, pode ser que você saia um pouco incomodada, sem saber exatamente o porquê, e achando que o filme deixa pontas soltas. O problema, ou a solução, é que essas pontas soltas são nossas, e só estarão juntas se a gente agir em grupo. Tudo bem, pode ser que pra isso seja necessário deixar um ou outro Elvis. Mas te garanto que as Priscillas e Sofias valem —e muito— a substituição.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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