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Ana Canosa

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A força transformadora de 'Mariazinhas' submissas em 'Marias' empoderadas

PeopleImages/Getty Images/iStockphoto
Imagem: PeopleImages/Getty Images/iStockphoto

Colunista de Universa

08/03/2022 04h00

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Chegando quase aos 70 anos, minha mãe descobriu que minha falecida avó portuguesa não se chamava Piedade e sim Maria da Piedade. Por alguma razão, quando ela veio para o Brasil, nos idos de 1920, sumiu o Maria e nos documentos brasileiros só constam o segundo nome. Não duvido que tenha sido da própria vontade, omitir Maria, já não bastasse, naquela época carregar tanta "piedade", ser dona de casa, criar duas filhas, ajudar o marido no açougue e ainda suportar seu machismo lusitano.

Nasceu em 8 de março, data que a partir de 1975 passou a ser comemorativa ao Dia Internacional da Mulher, mas que nunca foi associado positivamente, por nossa família, ao aniversário da vovó Piedade. Pudera, não faz nem 2 décadas que a comemoração tomou corpo no Brasil, como amplo manifesto feminista, inspirando reflexões sobre o que é ser mulher sob o ponto de vista da mulher — e vovó Piedade morreu antes.

Ela era uma mulher boa, generosa e guerreira à sua maneira, ficou viúva aos 45 anos e nunca mais quis saber de ter ao seu lado homem nenhum. É claro, diria uma querida paciente minha, nordestina de nascimento, tão forte quanto o sol que castiga a pequena cidade onde nasceu e cresceu, no interior do Ceará: "Vida de Mariazinha, ninguém aguenta mais".

Refere-se à falta de autonomia, ao restrito mundo do lavar, passar, cozinhar, viver para o marido, a filha e ainda se deparar, depois de 20 anos de casada, com a amante do marido que tinha pouco mais de idade do que o tempo que durou seu casamento.

Até hoje, quando dá uma pausa em casa, arruma coisa ou outra, faz uma comidinha, e descansa de tanta correria atrás de sua nova vida, à procura de cursos e trabalho, ela me diz: "Hoje fiquei naquela vida de Mariazinha".

O problema não é ser dona de casa e mãe; quer trabalho maior e mais dignificante? A questão é que historicamente diminuíram a nossa porção Maria à Mariazinha, sem possibilidades, sem graça, sem vontade. Foi a desigualdade, a violência, a limitação, o desrespeito, a opressão, a submissão, que outrora fez as Marias terem vergonha de si.

Mas o mundo está mudando.

Foram inúmeras Marias, a começar pela de Nazaré, a motivar tantas Robertas, Julia, Anas, Paolas, a sair desse lugar transformado em diminutivo. Foram as ousadas Marias Madalena, as guerreiras Marias Quitéria, as destemidas Marias Lenk, as criativas Marias Auxiliadora, as esplendorosas Marias Bethânia, as incansáveis Marias da Penha, as sensíveis Marias Valéria Rezende. Marias Pompeu, Marias da Conceição Tavares, Marias Júlia Coutinho, Marias Gadú.

Maria da Piedade não viveu para ver sua filha se separar aos 40 e recobrar a própria autonomia, fazer faculdade e curtir a vida. Tampouco testemunhou a neta se formar sexóloga, uma espécie de Maria sem vergonha - com muito orgulho - mas certeza não teria torcido o nariz.

Somos uma força transformadora de Mariazinhas em Marias — tantas mulheres diferentes, mas com muito em comum. Feliz Dia Internacional da Mulher, feliz Dia da Maria!