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Para todas as Anittas, Larissas e vítimas: vocês não estão sozinhas

Em julho desse ano, a atriz Julia Konrad veio a público contar que sofreu estupro marital - Divulgação
Em julho desse ano, a atriz Julia Konrad veio a público contar que sofreu estupro marital Imagem: Divulgação
Julia Konrad

Colaboração para Universa

17/12/2020 14h22Atualizada em 18/01/2021 18h31

No dia seguinte à estreia de "Anitta: Made in Honório" eu amanheci com uma mensagem de uma amiga. Era sobre a Anitta. "Ju, você viu?" Alguns minutos depois, lá estava eu, em frente à televisão, apertando play com o coração a mil.

Mais um relato. Mais uma mulher.

Assisti ao início do primeiro episódio sem foco algum. Só conseguia pensar em relatos, quantos relatos, quantas mulheres vindo adiante e quebrando o silêncio que paralisa tantas de nós por tanto tempo.

Quanta força.

Chorei junto com a mulher de 27 anos na tela da minha TV. O medo, a insegurança, o não, o silêncio, a força, o sangue no lençol, a cerveja displicente... 13 anos guardando esse segredo e vestindo dia após dia a armadura do "mulherão da porra". E, de repente, num choro sufocado, o nó desata e Larissa nos conta como Anitta nasceu. E contando sua história, ela não só se liberta, como liberta todas nós, mais uma vez.

A vítima pode ser qualquer uma de nós

Como tem sido comprovado pelos inúmeros relatos que tem vindo à tona nas últimas semanas, infelizmente, toda mulher já sofreu algum tipo de assédio, abuso, ou violência sexual ao longo da vida. Acredito também que uma grande maioria delas não faz a menor ideia disso. É difícil demais se reconhecer como vítima. Reconhecer que você não tem culpa, entender que absolutamente nada que você tenha feito antes ou depois da violência que marcou e definiu a mulher que você se tornou, nada disso jamais deu aquele homem o direito de fazer o que fez.

Por isso a importância da palavra de uma mulher. O peso dos relatos das mulheres que decidem levantar sua voz é imensurável. Porque eles nos mostram, mais uma vez, que a vítima pode ser qualquer uma de nós. Nos mostram que certos comportamentos que ainda são normalizados em nossa sociedade, como não respeitar uma mudança na vontade da mulher, ter relações com uma mulher que tenha usado entorpecentes, aproveitar-se de uma posição de poder para constranger uma mulher com palavras ou toques, todos esses comportamentos são violações da nossa integridade sexual.

O agressor não tem cara

E nos mostra também que a grande maioria dos nossos agressores são pessoas que conhecemos e confiamos. São homens que estão dentro das nossas vidas, nossas casas, nossos locais de trabalho. Afinal, precisamos lembrar que o abusador nem sempre tem cara de abusador. Um abusador é envolvente, carismático, provavelmente um bom chefe ou colega, um ótimo pai. Os relatos que têm vindo à tona recentemente nos mostram uma e outra vez que abusadores não são necessariamente monstros, muito pelo contrário. São figuras que amamos, respeitamos. Muitas vezes, são pessoas acima de qualquer suspeita.

Quando desmascarados, o comportamento segue um padrão que parece sair da mesma cartilha de regras: se escondem atrás de ameaças de processos, carreiras bem-sucedidas, discursos ideológicos rasos nas redes sociais, abraçam toda e qualquer causa para limpar a barra. Se utilizam de todos os meios possíveis para desacreditar a mulher. E sempre alegando que não sabiam, ou que erraram sim, mas jamais cometeram algo grave, ou que foi consensual. E, claro, o famoso "estou em desconstrução." Para muitos deles, a vida segue. Para nós, também, de certa forma. Mas com outra força.

Coragem coletiva

Larissa se soma a uma lista crescente de mulheres que decidem não viver mais no silêncio e querem usar suas vozes para ajudar outras vítimas. Dani Calabresa, Karen Junqueira, Juliana Lohmann, eu e tantas outras estão nesse coro. E a cada relato, nossa coragem coletiva se alimenta e cresce, forte e firme. A cada relato, a coragem de uma se torna a coragem de muitas e, aos poucos, as máscaras caem, mulheres se libertam, se curam, e como sociedade vamos finalmente caminhando sentido ao entendimento de que agressões verbais não são apenas uma discussão acalorada. Agressões físicas não são descontrole passional. E todo e qualquer toque sexual precisa de consentimento explícito. Porque sexo sem livre e espontânea vontade de ambas as partes, não é sexo. É estupro.

Por isso repito e falo: precisamos falar sobre estupro. Precisamos falar sobre violência contra a mulher. Precisamos falar sobre assédio. Só assim é possível seguir adiante, em frente. Com entendimento, discernimento e clareza.

Ontem estreou "Anitta: Made in Honório" na Netflix, e mais uma mulher deu um passo adiante. Mais uma mulher se juntou à nossa ciranda infinita, mãos que seguram mãos que estendem braços e oferecem peito para aquelas que precisam da força para levantar sua voz, e que precisam saber que não estão sozinhas. Se você ou alguém que você conhece precisa de ajuda, saiba que nossas mãos estão estendidas.

Sempre.

Julia Konrad é feminista, recifense, atriz e cantora. Nas redes sociais, é ativa na luta contra o machismo. Esteve presente em novelas como "Malhação: Seu Lugar no Mundo" e "O Sétimo Guardião"