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Como brasileiro achou anel espacial 'impossível' que desafia leis da física

Anel do Quaoar - Bruno Morgado é astrônomo e professor do Observatório de Valongo da UFRJ - Acervo pessoal
Anel do Quaoar - Bruno Morgado é astrônomo e professor do Observatório de Valongo da UFRJ Imagem: Acervo pessoal

Marcella Duarte

De Tilt, em São Paulo

02/04/2023 04h00Atualizada em 03/04/2023 10h23

Descoberto apenas em 2002, Quaoar é um pequeno mundo gelado e distante. Bem mais longe que Plutão, ele tem metade do diâmetro desse que já foi considerado o último e menor planeta do Sistema Solar.

Cientistas ainda não bateram o martelo se ele é um asteroide ou um planeta-anão, mas um astrônomo brasileiro recentemente encontrou algo bem estranho por lá: um anel ao seu redor. Teoricamente impossível, a descoberta pode reformular os pressupostos da ciência para o assunto.

Há uma distância mínima e máxima em que os anéis podem existir. É o chamado limite de Roche, estabelecido em 1850. Até agora, ele não havia sido 'quebrado'
Bruno Morgado, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), que atua no Observatório de Valongo e é autor principal do estudo publicado este ano na revista Nature*

Calculado de acordo com o raio e a densidade de um corpo, o tal limite de Roche é um marco da relação entre planetas e suas luas. Se passar desse ponto, um satélite é atraído com tal força que se desintegra em milhares de pedaços de rocha, poeira e gelo. O responsável por isso é um efeito secundário da gravidade, chamado de força de maré.

"Ao quebrar, esta lua vai se transformar em uma estrutura ao redor do corpo principal", diz Morgado. Essa é uma das maneiras que anéis se formam.

O oposto também acontece: se um anel se afasta demais do planeta e atravessa o limite de Roche, ele vai se aglutinar e virar uma lua. "As forças que mantinham o anel estável começam a não ser mais tão relevantes. A gravidade entre as pedrinhas que o compõem vai fazer com que ele se junte, se tornando um satélite natural", explica o astrônomo.

Pelo menos é isso que deveria acontecer. A questão é que o anel do Quaoar está muito além desse limite e, pela teoria, já devia ter virado um satélite — o segundo a orbitar o planeta, que já tem a lua Weywot.

Quaoar tem 550 km de raio. O limite de Roche esperado para ele é da ordem de 1.700 km, enquanto o anel se encontra a 4.100 km de distância do centro. É mais que o dobro. É muito, muito, fora da região esperada
Bruno Morgado, professor da UFRJ

Aos 31 anos de idade, esta foi a primeira publicação de Morgado como autor principal na Nature, a mais conceituada revista de artigos científicos. Formado em física, ele trabalha com astronomia e astrofísica desde 2013, quando iniciou o mestrado na UFRJ. "Desde então, estudo os pequenos corpos do Sistema Solar e satélites naturais, fazendo determinações de posição e de parâmetros físicos. É muita observação e análise de dados."

Anel - ESA - ESA
Impressão artística de Quaoar e seu anel 'impossível' e irregular
Imagem: ESA

De 2015 a 2019, ele fez um doutorado "sanduíche", entre o Observatório Nacional, no Brasil, e o Observatório de Paris, na França. Na sequência, voltou para a Europa e fez um pós-doutorado, focado na técnica de ocultação estelar. Foi nesta época que ingressou na colaboração internacional por trás da descoberta deste anel "impossível" e outros dois.

"Durante o pós-doc, trabalhei em cima dos anéis do centauro Chariklo, e isso me trouxe todo um know-how sobre essas detecções, o que permitiu que eu estivesse no lugar certo, com as pessoas certas e com as habilidades certas para fazer a descoberta Quaoar", relembra. Ele faz parte do apelidado "grupo do Rio".

Sempre fui muito curioso, queria entender como as coisas funcionam. E a física tem essa vertente para entender como o universo funciona. Isso me levou ao mundo acadêmico, onde a gente está todo dia tentando aprender mais. É o ambiente onde boto minha curiosidade à prova, o grande motor do meu trabalho
Bruno Morgado, professor da UFRJ

Protagonismo brasileiro

Morgado não está sozinho. O Brasil tem protagonismo neste tipo de descoberta. Até então, acreditava-se que anéis apenas existiam nos grandes planetas do Sistema Solar (Júpiter, Saturno, Urano e Netuno). Mas esta é a terceira vez na história que um anel é detectado ao redor de um pequeno corpo, e todas essas descobertas envolveram brasileiros.

"Nosso grupo é muito forte nesta área", diz o professor da UFRJ.

Em 2013, Felipe Braga Ribas, da UTFPR (Universidade Tecnológica Federal do Paraná), fez história ao encontrar uma estrutura ao redor do centauro Chariklo. Em 2017, a mesma equipe — uma colaboração com cerca de 60 cientistas da França, Espanha e Brasil, desta vez incluindo Morgado — encontrou o sistema de anéis do planeta-anão Haumea. Ambos, porém, respeitam o limite de Roche.

A técnica empregada em todas as descobertas foi a de ocultação estelar, especialidade de Morgado. Em linhas gerais, funciona assim: não se observa o corpo diretamente, mas, sim, a sombra dele quando passa na frente de uma estrela qualquer do céu. Para isso, recorreram a dados de diversos telescópios ao redor do mundo para mapear as estrelas próximas a Quaoar.

"É como um eclipse. Se você estiver no lugar certo, na hora certa, vai ver essa estrela se apagando por alguns segundos, e depois ela vai reaparecer. É exatamente nesse instante que o objeto passou na frente dela", explica Morgado. Se o brilho também é alterado momentos antes e depois desta passagem, indica a existência de um anel ao redor do planeta.

Por isso, essa técnica é muito sensível à presença de anéis. Analisando as breves e sutis variações do brilho da estrela, dá para calcular densidade e a largura do anel, com precisão de quilômetros. Foi por meio deste método que todos os anéis do Sistema Solar foram descobertos, com exceção dos de Saturno, que tem um sistema muito denso e é facilmente visível por instrumentos ópticos a partir da Terra.

Como é o anel?

Pela ocultação estelar, uma observação indireta, não dá para ver o anel "impossível" em sua totalidade ao mesmo tempo. "A gente vê pequenas regiões do anel de cada vez. A partir dos dados coletados, vamos determinando seus parâmetros físicos", diz Morgado. "Sabemos que o anel de Quaoar é muito irregular."

Há regiões com largura muito pequena, de 5 km, e outras em que o anel se estende por 300 km. A matéria também não é distribuída igualmente: na parte mais estreita, há muito mais material. Essa grande variação de densidade também é incomum para nosso conhecimento atual.

Esta terceira detecção de um anel ao redor de um corpo menor sugere que eles são mais comuns do que pensávamos. "E eles podem ter diferentes formas, tamanhos e maneiras de existir", destaca o pesquisador. "O fato de a gente descobrir um anel fora da região esperada nos diz que ainda temos muito a aprender sobre a formação de satélites naturais."

O desafio, agora, é entender como o anel de Quaoar consegue existir fora do limite de Roche.

É muito importante não só fazer novas observações, mas também novos modelos numéricos, considerar parâmetros que eram negligenciados. A gente vai utilizar as leis da física, as leis da dinâmica, para tentar entender o que está acontecendo nesse anel. Por que ele está onde está? Como está evoluindo no tempo?
Bruno Morgado, professor da UFRJ

Uma possibilidade é haver alguma influência gravitacional desconhecida sobre o sistema, que impediria os pedaços do anel de se aglutinarem em um satélite. É possível ainda que ele seja uma estrutura transitória, que vai desaparecer gradualmente, enquanto se agrega — teoricamente, um anel como este levaria de cinco a dez anos para virar uma lua.

Mais que entender este processo, os estudos podem trazer descobertas sobre os mecanismos e a evolução do Sistema Solar como um todo. Quaoar não é o único alvo. "Continuaremos observando outros corpos em busca de anéis similares. Agora, não apenas dentro do limite de Roche, mas também fora dele", conclui o astrônomo.

*Também compuseram a equipe os brasileiros Felipe Braga Ribas e Giuliano Margoti, da UTFPR; Chrystian Luciano Pereira, Flavia Luane Rommel, Roberto Vieira Martins, Rodrigo Carlos Boufleur e Julio Ignacio Bueno de Camargo, do Observatório Nacional; e Marcelo Assafin, Altair Ramos Gomes Júnior, Gustavo Benedetti Rossi, do Laboratório Interinstitucional de e-Astronomia (LIneA).