Topo

De vira-lata a ícone mundial: 65 anos atrás, Laika dava a volta na Terra

A cachorrinha Laika: uma missão "suicida" que mudou o mundo - Rex Features; Frann Preston-Gannon
A cachorrinha Laika: uma missão "suicida" que mudou o mundo Imagem: Rex Features; Frann Preston-Gannon

Cláudio Gabriel

Colaboração para Tilt, do Rio de Janeiro

03/11/2022 04h00

Em 3 de novembro de 1957, a cadela russa Laika foi lançada ao espaço a bordo da nave soviética Sputnik 2, que passaria cinco meses orbitando a Terra. Ela foi o primeiro ser vivo a dar uma volta no planeta.

A vira-lata de três anos de idade e 6 kg, que vivia pelas ruas de Moscou, foi "resgatada" para trabalhar no promissor programa espacial da União Soviética (hoje Rússia). Era a cosmonauta perfeita: porte adequado ao tamanho da nave, pelo curto (para facilitar a colocação de sensores), boa saúde, temperamento dócil e obediente.

O mundo ainda não sabia, mas era uma missão suicida. Não se esperava que ela voltasse viva à Terra — em cerca de uma semana, o oxigênio disponível iria acabar. Mas seu destino veio bem mais cedo do que o esperado. A cachorrinha morreu entre cinco e sete horas após o lançamento, provavelmente devido ao estresse causado por um brusco superaquecimento da cápsula, em uma falha.

Estima-se que ela tenha sobrevivido a quatro voltas completas na Terra. A Sputink 2, com o corpo de Laika, continuou ao redor do planeta por um total de 162 dias, reentrando e queimando na atmosfera terrestre em 14 de abril de 1958, após cerca de 2.370 órbitas.

Selo da Romênia em homenagem à Laika - Reprodução - Reprodução
Selo da Romênia em homenagem à Laika
Imagem: Reprodução

Ironicamente, a morte de Laika provou que dava para se viver no espaço. Na época, pouco se sabia sobre os efeitos destas viagens nos organismos vivos. Havia dúvidas se um ser humano conseguiria sobreviver a um lançamento, às condições do espaço e ao ambiente de microgravidade. A experiência mostrou que sim, abrindo caminho para futuras missões tripuladas.

Nesse vídeo, é possível ver um compilado de suas imagens:

De moscas a humanos

Antes de os humanos irem ao espaço, em 1961, dezenas de animais foram usados em testes. Laika não foi o primeiro e nem o último.

O primeiro registro é bem inusitado: um grupo de moscas de fruta Drosophila melanogaster, enviadas pela Nasa, em 1947. Elas sobreviveram a uma curta viagem na radicação espacial e a agência espacial norte-americana, então, decidiu tentar com macacos.

Em 1949, o macaco Albert II se tornou o primeiro mamífero a chegar ao espaço. Ele sobreviveu a um voo suborbital (que apenas sobe a mais de 100 km, que é o limite do espaço, e retorna, sem orbitar o planeta). Alcançou 134 km de altitude mas morreu no pouso, quando os paraquedas falharam.

O chimpanzé Ham foi o primeiro animal enviado ao espaço pelos Estados Unidos, quatro anos depois da Laika - Nasa/AFP - Nasa/AFP
O chimpanzé Ham foi enviado ao espaço pelos Estados Unidos quatro anos depois da Laika
Imagem: Nasa/AFP

Por algum motivo, a União Soviética preferiu cães. Em 1951, lançou os primeiros cachorros espaciais, Dezik e Tsygan. Eles foram a 110 km de altitude e pousaram em segurança. Estima-se que, até 1966, o país fez 71 lançamentos caninos.

Para os gateiros de plantão, o primeiro e único felino a ir ao espaço foi a gatinha Félicette, lançada pela França em 1963. Ela sobreviveu à viagem de 15 minutos a 157 km de altitude. Um grande feito.

Veja algumas imagens dela (ronrons inclusos):

Também houve ratos, coelhos, tartarugas, sapos, peixes e insetos diversos no espaço. Todos estes animais "prestaram um serviço a seus países, que os humanos não puderam ou quiseram realizar. Deram suas vidas e seu serviço em nome do avanço tecnológico, trilhando o caminho para as muitas incursões da humanidade no espaço", declarou a Nasa.

A história da cachorrinha mais famosa

3.nov.1957 - Cientistas apresentam Laika antes de ela embarcar na cápsula Sputnik 2 e ser enviada ao espaço. A simpática cadela morreu horas depois do lançamento devido a uma falha no sistema de controle térmico que  superaqueceu a nave durante o voo orbital - Reprodução - Reprodução
Cientistas apresentam Laika antes de ela embarcar na cápsula Sputnik 2 e ser enviada ao espaço
Imagem: Reprodução

O ano de 1957 representava um período auge da Guerra Fria, conflito político-ideológico entre a União Soviética (URSS) e os Estados Unidos, entre socialismo e capitalismo. Uma de suas facetas era a corrida espacial, para demonstrar o poderio de quem chegaria mais longe da Terra primeiro. O uso dos animais foi uma etapa importante deste processo.

Os cientistas soviéticos escolheram Laika e outros cachorros que estavam abandonados pelas cidades por acreditarem que teriam melhor facilidade de sobreviver a condições intensas — especialmente fome e temperaturas extremas.

Uma curiosidade é que seu nome é um tanto quanto genérico para diversas raças de cachorro russas. Em tradução literal, significa "latidor" — ela, inclusive, latiu para o mundo em entrevistas de rádio.

Os funcionários soviéticos deram apelidos para ela, como Kudriavka ("encaracoladinha"), Jutchka ("bichinho") e Limontchik ("limãozinho"). Nos Estados Unidos, a imprensa também a chamava de Muttnik (trocadilho com 'mutt', que é vira-lata em inglês, e o nome do programa Sputnik).

A nave Sputnik 2 era um cone, com quatro metros de altura e 113 kg, que sucedeu o sucesso de Sputnik 1 — o primeiro satélite artificial da história. Enviando um ser vivo para órbita, a União Soviética pretendia dominar ainda mais a corrida espacial, e celebrar o 40º aniversário da revolução comunista com algo "espetacular".

Foram selecionados dez cachorros para testes de pressão, nos quais três se sobressaíram: Laika, Albina e Mukhu. Elas foram treinadas para se comportar em espaços confinados e controlar suas necessidades fisiológicas. Mas Albina estava grávida e Mukhu não era considerada muito fotogênica — Laika foi a escolhida para morrer no espaço e entrar para a história.

Ela passou por procedimentos para implantar sensores para monitorar respiração, frequência cardíaca, pressão sanguínea, temperatura e movimentos durante o voo. Na cápsula, do tamanho de uma máquina de lavar roupa, havia alimentos à disposição, um dispositivo para regeneração química do ar e um sistema de coleta de urina e fezes.

A cadela chegou ao espaço mais nervosa que o esperado, com batimentos muito acelerados, e demorou horas para se acalmar. Depois, problemas no foguete — o motor central não se separou quando deveria e a temperatura interior ultrapassou os 40 graus — intensificaram o stress e levaram Laika a uma parada cardíaca.

A verdadeira causa e a hora de sua morte não foram divulgadas até 2002; na época, o governo soviético disse que ela havia sido sacrificada com comida com medicamentos antes do esgotamento do oxigênio, para não sofrer, no sexto dia da missão.

Legado

Este episódio levantou um intenso debate sobre a ética no uso de animais em viagens espaciais. Diversos protocolos foram criados, muitos utilizados até hoje. Mais que isso, Laika se transformou em um símbolo da cultura popular, seja russa ou americana.

Uma estátua foi erguida em sua homenagem, em 1997, na Cidade das Estrelas, local de treinamento do programa espacial russo. E a instalação de pesquisa em que ela foi treinada recebeu seu nome. Também foi lembrada em selos comemorativos na Rússia, Ucrânia, Romênia e outros países do antigo bloco soviético.

Além da órbita da Terra, a cachorrinha conquistou até Marte. Um dos pontos do planeta vermelho, explorado pelas missões Spirit e Opportunity, da Nasa, foi batizado de Laika.

Pelo mundo, é possível encontrar facilmente peças de vestuário e objetos de decoração com seu simpático rosto estampado. Além disso, já foi tema de um quadrinho de Nick Abadzis, que ganhou o Prêmio Eisner (o Oscar das HQs) e de uma música da banda indie canadense Arcade Fire.

Mesmo com seu pouco tempo de vida, Laika deixou um legado eterno e se tornou um ícone para os apaixonados por astronomia e animais.