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Igrejas usam apps no celular de fiéis para espionar e barrar pornografia

Igrejas usam aplicativos para monitorar celulares de fiéis nos Estados Unidos - iStock
Igrejas usam aplicativos para monitorar celulares de fiéis nos Estados Unidos Imagem: iStock

Simone Machado

Colaboração para Tilt, em São José do Rio Preto (SP)

26/09/2022 14h15Atualizada em 26/09/2022 14h18

Algumas igrejas nos Estados Unidos estão usando aplicativos de rastreio e vigilância para monitorar fiéis em suas atividades online no celular. O argumento para convencer os participantes a instalar os programas é que isso impedirá que eles acessem sites de pornografia, evitando assim comportamentos pecaminosos.

Segundo reportagem da revista Wired, alguns apps do tipo acabam monitorando mais do que os fiéis percebem.

O que rolou?

Hao-Wei Lin começou a frequentar a igreja evangélica Grace Point ("Ponto da Graça", na tradução direta) e estranhou o fato de ter sido aceito já que é gay. No segundo encontro individual com o líder religioso responsável pela igreja, foi pedido a ele que instalasse um aplicativo chamado Covenant Eyes em seu celular.

O app é comercializado como software antipornografia. Mas, de acordo com Hao-Wei Lin, o religioso disse que o app o ajudaria a "controlar todos os seus impulsos", diz a reportagem.

O Covenant Eyes faz parte de um ecossistema multimilionário dos chamados "aplicativos de responsabilidade" comercializados para igrejas e pais como ferramentas para monitorar a atividade online dos usuários.

Um mês após a instalação do programa, Hao-Wei Lin conta que começou a receber emails acusatórios do líder da igreja dizendo que ele havia visto "coisas indevidas" na internet.

"Alguma coisa que você precisa me dizer?", dizia um email que ex-fiel recebeu e compartilhou com a Wired. Em anexo estava um relatório da Covenant Eyes que detalhava cada conteúdo que ele havia acessado na semana anterior.

Após ser interrogado e perceber que era vigiado 24 horas, Hao-Wei Lin decidiu deixar à igreja e relatar o que acontecia no local.

Como o Covenant Eyes funciona

O software Covenant Eyes foi desenvolvido por Michael Holm, um ex-matemático da NSA (Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos) que agora atua como cientista de dados para a empresa.

O sistema é supostamente capaz de distinguir entre imagens pornográficas e não pornográficas. O app captura tudo o que está visível na tela de um dispositivo, analisando as imagens localmente antes de desfocá-las e enviá-las para um servidor onde são salvas.

Entre os principais aplicativos de responsabilidade — incluindo nomes como Accountable2You e EverAccountable — o Covenant Eyes parece ser o maior.

Segundo a empresa de análise de aplicativos AppFigures , no ano passado mais de 50 mil pessoas baixaram o app. Calcula-se que empresa tenha uma receita anual de US$ 26 milhões, de acordo com a reportagem.

Tolerância zero à pornografia

O que é comum entre Covenant Eyes, Accountable2You e EverAccountable é a abordagem de tolerância zero à pornografia. Os três aplicativos sugerem em seus materiais de marketing que assistir pornografia não é apenas uma falha moral, mas também prejudicial à saúde.

Embora esses apps afirmem ter ajudado pessoas a superar o vício em pornografia, especialistas que estudam a saúde sexual dizem que programas desse tipo não têm um efeito duradouro.

"Nunca vi ninguém que tenha usado um desses aplicativos se sentir melhor consigo mesmo a longo prazo", afirmou Nicole Praus, cientista da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, que estuda os efeitos da pornografia no cérebro.

Espiona mais do que pornografia

Ainda segundo a reportagem, os programas Covenant Eyes e Accountable2You fazem muito mais do que verificar apenas pornografia. Quando o Wired baixou e testou os dois, notou-se que ambos foram criados para coletar, monitorar e relatar tudo o que o usuário faz em seu celular.

No caso de Hao-Wei Lin, isso incluiu compras na Amazon, artigos que ele leu e até quais contas de amigos ele olhou no Instagram, por exemplo.

Apps suspensos

Depois que a Wired entrou em contato com o Google para ter esclarecimentos sobre a disponibilidade do Covenant Eyes e Accountable2You, os dois apps foram suspensos da Play Store.

"O Google Play permite o uso da API [interface de programação] de acessibilidade para uma ampla gama de aplicativos. No entanto, apenas os serviços projetados para ajudar pessoas com deficiência a acessar seus dispositivos ou superar desafios decorrentes de suas deficiências são elegíveis para declarar que são ferramentas de acessibilidade", disse a porta-voz Danielle Cohen.

Covenant Eyes e Accountable2You permanecem disponíveis no iOS. Segundo o Wired, a Apple não se manifestou sobre o assunto.

Vigilância em excesso preocupa

Eva Galperin, diretora de segurança cibernética da Electronic Frontier Foundation, uma organização sem fins lucrativos de direitos digitais, disse que apesar de as pessoas darem o seu consentimento para os aplicativos funcionarem, a descoberta de que eles vigiam mais do que o dito causa preocupação.

"Um dos elementos-chave do consentimento é que uma pessoa pode não se sentir confortável em dizer não. Você pode argumentar que qualquer aplicativo instalado em um ambiente de igreja é feito de maneira coercitiva", diz.

Embora a Wired não tenha falado com ninguém que não sabia que o aplicativo estava instalado em seu aparelho celular, Hao-Wei Lin diz que não se sentiu confortável em negar ao seu líder religioso a instalação do app.

Na busca para conter o comportamento que as igrejas consideram imorais, esses programas de responsabilidade coletam e armazenam informações pessoais confidenciais de seus usuários, inclusive de menores de 18 anos, destaca a reportagem.