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'Dr. Facebook': Como a rede se tornou foco de desinformação sobre saúde

Ícone do Facebook - Unsplash
Ícone do Facebook Imagem: Unsplash

Letícia Naísa

De Tilt, em São Paulo

01/07/2021 04h00

Quem nunca jogou no "Dr. Google" qualquer sintoma atrás de um diagnóstico? Médicos relatam há anos, e com frequência, histórias de pacientes que chegam ao consultório com um diagnóstico fechado com base nos resultados de busca — que erra muitas vezes. Durante a pandemia, no entanto, um novo "agente de saúde" tem atuado, o "Dr. Facebook".

Um grupo de pesquisadores da UFPEL (Universidade Federal de Pelotas) analisou dados de 4.256 páginas e grupos na rede social de Mark Zuckerberg para observar a disseminação de informações sobre a covid-19. E o resultado provou o que muita gente já imaginava: circula no Facebook muito mais desinformação sobre saúde do que conteúdo confiável.

Segundo o estudo, apenas 10% dos grupos e páginas abertos da rede que compartilham desinformação também compartilham a checagem dos fatos. A pesquisa usou a ferramenta CrowdTangle para fazer as análises da rede social.

Em entrevista a Tilt, Raquel Recuero, professora e pesquisadora da UFPEL, coordenadora do MIDIARS (Laboratório de Pesquisa em Mídia, Discurso e Análise de Redes Sociais) e uma das autoras do estudo, destaca o papel do Facebook no fenômeno de propagação de fake news e por que as informações falsas ganharam tanto espaço na rede social. Confira abaixo.

Tilt: Como o Facebook se transformou em fonte de informação sobre saúde?

Raquel Recuero: Ali estão pessoas que as pessoas dão crédito, ou seja, que têm uma posição social porque têm conhecimento sobre saúde. Há médicos, enfermeiros, pesquisadores da área. Embora não sejam os mais influentes na circulação de desinformação sobre saúde, o fato de eles estarem lá e de circular informação ali faz com que as pessoas percebam o Facebook como um espaço de mídia, como se fosse um jornal.

Tem informações que chegam nas pessoas e informações que não chegam. Essa filtragem é feita coletivamente. As pessoas vão escolhendo o que vão compartilhar ou não, o que vão curtir ou não, e o algoritmo vai dando visibilidade para isso. É um espaço onde a informação chega, às vezes, mais rápido do que na mídia tradicional, muitas vezes é um tipo de informação que vem com a legitimação de uma autoridade. É nesse sentido que as pessoas vão dando valor, pela autoridade de quem compartilha.

Tilt: Qual o principal problema de uma rede social se transformar em fonte de informação?

Raquel Recuero: Toda rede social é fonte de informação. O problema é que as pessoas não diferenciam muito bem a questão da mediação. Essa dificuldade de entender o que é um trabalho jornalístico do que é um debate entre pessoas é questão de aprendizado e precisa ser realizado em torno das tecnologias digitais. Aquilo que eu vejo não é necessariamente o que é mais importante ou relevante, mas o que a minha rede social está falando, o que as pessoas próximas de mim estão falando. Isso não significa que a informação seja verdadeira nem relevante.

A rede social tem pontos muito positivos quando compartilha informação, porque esse é todo o objetivo da gente estar em sociedade. Só que essa informação precisa ser filtrada, precisa ser credibilizada. E a gente tem mecanismos para isso, que seria principalmente a mídia, que vai checar, vai publicar informação fidedigna, que vai organizar o que é mais importante. Mas a rede social é o caos informativo, são todas as pessoas falando ao mesmo tempo de coisas diferentes, que às vezes são verdadeiras e às vezes não.

Tilt: Por que a desinformação ganhou tanto terreno dentro do Facebook e, em especial, aquela sobre saúde?

Raquel Recuero: No espaço do Facebook, quando eu tenho páginas e grupos que já têm uma certa filiação ideológica, as informações vão sendo compartilhadas como loucas, porque isso tem a ver com aquele discurso de que eles já concordam, e isso vai sendo passado adiante. E no Brasil, a gente tem uma questão fundamental na desinformação sobre saúde que é ela ser enquadrada como uma desinformação política. Por isso essa desinformação vai atuar em grupos que já estão polarizados. Exemplo: dizendo que usar máscara é uma decisão política e não um pacto coletivo de proteção da saúde de todos. Aí, se eu uso máscara, eu estou filiada a um discurso político. Se eu não uso, estou filiada a um discurso político B.

Se transforma essa discussão numa briga de torcidas e não numa coisa que precisa da colaboração coletiva, como é o caso da saúde pública. O Facebook e outros canais de mídia social têm esse problema, eles conseguem ser potencializadores de campanhas desinformativas que trazem ganhos e interesses políticos para alguns.

Quanto mais desinformação vai sendo legitimada, porque a gente está dentro de uma bolha nessa ferramenta, isso vai me radicalizando. É tanta gente falando que esse bombardeio desinformativo me convence. É nesse sentido que essas ferramentas acabam criando problemas e malefícios para a população.

Tilt: Vocês identificaram que apenas 10% dos grupos que compartilham desinformação também compartilham a checagem. Por que a checagem custa tanto a chegar nesses ambientes?

Raquel Recuero: A desinformação só circula se ela concorda com aquilo que está sendo dito nos grupos. É muito complicado para a checagem chegar porque ela vai ser filtrada, dizem que aquilo é "fake news de esquerda" e não passam adiante. É impressionante, os veículos checadores são classificados como comunistas, a mídia tradicional é classificada como comunista, então não circula. A desinformação está concentrada em grupos de extrema-direita com posições muito radicalizadas.

Tilt: Como as redes sociais podem ser usadas para combater as fake news?

Raquel Recuero: Para o combate à desinformação, a gente precisa de várias estratégias. A gente precisa de campanhas informativas fora da mídia social. Porque as pessoas nessas bolhas não estão recebendo conteúdo verificado, conteúdo verdadeiro. Então a gente precisa que isso transborde na sociedade, usar a mídia tradicional, os jornais, todas as ferramentas possíveis para chegar nas pessoas, não só as plataformas.

Outra coisa importante é a mídia tradicional, principalmente o jornalismo, se preocuparem com as manchetes. Quando circulam os conteúdos nas mídias sociais, circulam principalmente com destaque para a manchete e linha de apoio. Então o jornalismo declaratório, por exemplo, que coloca como manchete "fulano diz cloroquina cura", é usado para legitimar a desinformação, mesmo que a matéria desdiga aquilo que está na manchete. É muito importante ter esse cuidado de parar de legitimar a desinformação, ainda que de modo não intencional.

Tilt: E como as pessoas podem usar melhor as redes sociais para não compartilhar desinformação?

É muito difícil chegar nessas bolhas radicalizadas. O conteúdo que circula na plataforma de mídia social é um conteúdo que os algoritmos vão fazer com que circule para manter você o máximo de tempo possível na plataforma. Tu vais ver coisas com as quais tu interages. Há algoritmos naquele conteúdo. Mas claro que as pessoas decidem se vão ou não compartilhar. Não é só o algoritmo.

Portanto, se as ferramentas conseguem taguear desinformação e, na média, elas conseguem, isso reduz muito a circulação. Aquele conteúdo para de circular porque ninguém quer parecer desinformado. O problema é que isso é um processo lento, um processo que, para o português ainda está bem atrasado e que talvez não chegue tão longe. Só a gente ficar postando no Facebook não funciona.