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Polícia invade WhatsApp para pegar suspeito de tráfico, e caso é anulado

Acesso sem autorização judicial ao WhatsApp pode anular provas usadas em acusações - Estúdio Rebimboca/UOL
Acesso sem autorização judicial ao WhatsApp pode anular provas usadas em acusações Imagem: Estúdio Rebimboca/UOL

Helton Simões Gomes

De Tilt, em São Paulo

18/12/2019 04h00

Sem tempo, irmão

  • PRF do Rio prendeu em flagrante jovem carioca suspeito de tráfico de drogas
  • Ação só ocorreu porque agentes acessaram WhatsApp de outro rapaz sem aval judicial
  • Juiz considerou invasão uma afronta a direitos constitucionais e anulou provas
  • Isso levou à absolvição do suspeito, que tinha balanças de precisão e 220 g de droga em casa

A Justiça do Rio absolveu em segunda instância um homem condenado por tráfico de drogas. Ele havia sido condenado em primeira instância, mas os desembargadores anularam a decisão. Eles constataram que a investigação contra o suspeito só aconteceu porque a polícia obteve acesso ao smartphone e ao WhatsApp de outro rapaz sem devida autorização judicial.

A decisão da 7ª Câmara Criminal do TJ-RJ foi emitida na última sexta-feira (13). Segundo advogados consultados pela reportagem, foi a primeira vez que o Tribunal de Justiça do Rio tomou a decisão de anular uma condenação que nasceu a partir de mensagens obtidas no WhatsApp sem o aval de um juiz.

Para os juízes, o acesso ilegal às mensagens no aplicativo mais famoso do Brasil é equiparável a grampos telefônicos.

Entenda o caso

Em agosto de 2017, agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) pararam um veículo na via Dutra em que estavam dois jovens, Vitor* e Felipe*. Eles saíram de Cachoeira Paulista (SP) rumo ao Rio em um carro alugado, modelo Onix.

Após uma revista inicial, a polícia não encontrou drogas ou armas, nem constatou problema algum com o documento dos rapazes. Mesmo assim, eles foram conduzidos a um galpão da PRF na Pavuna.

Neste local, a dupla afirmou ter sofrido violência psíquica e física. Os policiais obrigaram os jovens a se despir e a fazer agachamentos. Felipe apanhou e chegou a ser ameaçado com uma arma, que foi apontada para seu rosto.

Depois disso, os dois acabaram admitindo que iriam ao Rio para encontrar Mateus*, o conhecido de um amigo que daria a eles uma quantidade de haxixe. Segundo a polícia, os jovens, na verdade, tinham o objetivo de comprar a droga. Pagariam R$ 2 mil por 50 gramas de haxixe.

Como os dois disseram que não conheciam o suspeito de ser traficante, os policiais forçaram Felipe a expor o conteúdo de seu smartphone. Ele se recusou. Disse que havia fotos íntimas de sua namorada. Não adiantou. Os policiais pressionaram a mão dele contra a tela do aparelho para destravá-lo usando sua impressão digital.

Depois disso, acessaram o WhatsApp sem autorização. Vasculharam as comunicações trocadas pelo aplicativo em busca das mensagens enviadas pelo amigo que havia feito a indicação. A partir daí, os policiais se passaram por Felipe para obter o número de telefone de Mateus.

Por meio desse truque, os policiais conseguiram marcar um encontro na praia de Copacabana com Mateus. Era lá que a droga seria entregue. Só que, em vez de efetuar a prisão no momento em que o haxixe passou de uma mão para outra, os policiais acompanharam tudo à distância e preferiram seguir Mateus até sua residência, um apartamento de classe média na região.

Os agentes entraram no domicílio sem mandado de busca e apreensão. Encontraram lá 223 gramas de haxixe e maconha, além de itens que, segundo eles, eram usados para comércio de entorpecente, como moedor de erva, caixas de seda, unidades de embalagem de borracha, isqueiro, rolo de filme plástico, cachimbos e duas balanças de precisão. Segundo a defesa do jovem, era tudo para consumo próprio.

O rapaz foi preso em flagrante e, mais tarde, sua prisão foi convertida em preventiva. Ainda em outubro de 2017, a Justiça do Rio condenou o jovem a um ano e oito meses de prisão por tráfico privilegiado, situação em que pessoas enquadradas por tráfico de drogas têm a pena abatida por serem réus primárias, terem bons antecedentes e não integrarem organização criminosa.

'Circunstância impensável'

Tanto o Ministério Público do Rio de Janeiro quanto a defesa do rapaz recorreram da decisão. Os promotores queriam ampliar o tempo de cadeia para cinco anos e os advogados de defesa queriam a absolvição.

O juiz Sidney Rosa da Silva, relator do processo, concordou com o MP-RJ e votou pela ampliação da pena. Já o desembargador Joaquim Domingo de Almeida Neto discordou e votou pela anulação das provas. Como o terceiro juiz o acompanhou, o jovem carioca foi absolvido. Ainda cabe recurso. Tilt entrou em contato com o MP-RJ, que não respondeu até a publicação deste texto.

Para Almeida Neto, a ação policial só foi possível devido ao acesso ilegal ao WhatsApp de um dos dois jovens parados na blitz rodoviária.

"A apreensão das drogas se deu tão somente em razão do acesso indevido às mensagens no aparelho celular, que provocou a ida dos policiais à residência do réu, não havendo contra ele, até então, qualquer investigação, tampouco mandado de busca e apreensão que justificasse a busca realizada em sua residência", disse o desembargador.

O magistrado acha que a conduta dos policiais viola o inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, que diz ser "inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial". Ele também levou em consideração o entendimento do STJ desde fevereiro de 2018, de que provas extraídas de conversas por meio de aplicativos sem a devida autorização judicial são ilícitas.

Não era permitido aos policiais que invadissem a intimidade de usuário investigado com acesso aos dados telefônicos sem autorização judicial com vistas a obter provas do crime e de sua autoria. Fechar os olhos para tal ilicitude consiste em permitir que policiais vasculhem o aparelho celular de qualquer cidadão em busca de elementos indicativos da prática de eventuais delitos, circunstância absolutamente impensável no Estado Democrático de Direito que vivemos

Para Rafael Borges Caetano, advogado de Mateus, a situação sofrida por seu cliente é mais do que corriqueira. "Essa situação acontece aos montes. O difícil não é provar [o acesso ilegal ao WhatsApp], mas, sim, fazer a Justiça reconhecer que essa ilegalidade contamina a ação condenatória", diz.

"O TJ deixou claro que a obtenção de dados se equipara a uma interceptação telefônica ilegal. Da mesma forma que você não pode ouvir as conversas das pessoas pelo telefone sem prévia autorização judicial, não se pode invadir o WhatsApp sem a Justiça dar aval."

Para o juiz, os policiais deveriam ter apreendido o celular e pedir à Justiça a quebra do sigilo das comunicações guardadas nele. Só então poderiam analisar as mensagens no WhatsApp.

Henrique Rocha, advogado especialista em direito digital do escritório PG Advogados, concorda que, em situações como essa, o agente deveria fazer apenas a apreensão e "de forma alguma forçar o proprietário do aparelho a abrir qualquer informação do aparelho".

Ninguém é obrigado a dar acesso ao aparelho ou ao WhatsApp seja em uma batida policial ou em uma averiguação. Quando se trata da inviolabilidade de sigilo das comunicações, pode parecer uma frivolidade, algo banal, mas a própria Constituição Federal garante a tutela desses direitos

Ele pondera que o acesso ilegal ao WhatsApp não é garantia de absolvição, como ocorreu neste caso. É mais provável que isso ocorra caso a única prova seja obtida dessa forma. Casos em que há outras evidências, como testemunhos e objetos apreendidos que comprometam o acusado, podem ter desfechos diferentes.

* o nome completo dos jovens foi suprimido para que tivessem a privacidade preservada

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