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Renato de Castro

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Entender a conexão dos cidadãos é a base das novas cidades inteligentes

Vedat Zorluer/ Pixabay
Imagem: Vedat Zorluer/ Pixabay

05/10/2021 04h00

Hoje iremos discutir a importância do DNA das nossas cidades no desenvolvimento das estratégias de smart city. Desenvolvi esse texto com a colaboração de Max Leal, um brasileiro radicado em Portugal, grande especialista em City Branding, o desenvolvimento de marcas e posicionamento para cidades.

Sem dúvida, as cidades são um dos motores mais críticos na evolução de nossa civilização. Desde que percebemos que podíamos controlar e manipular a natureza, ainda na primeira revolução agrícola, também conhecida como Revolução Neolítica, começamos a dominar nossa vida social. Desde 4.500 a.C., a humanidade construiu todo o seu legado com base em uma única palavra: cidade.

Estamos agora enfrentando um novo momento crítico no desenvolvimento de cidades inteligentes no Oriente Médio.

A região, berço da primeira cidade de todos os tempos —a antiga cidade de Uruk, localizada no atual Iraque e distante apenas 1.600 quilômetros de Dubai— concentra a maioria dos projetos greenfield (explico o termo mais abaixo) de cidades inteligentes do mundo.

Só a Arábia Saudita hospeda 17 projetos gigantescos, com um orçamento de investimento total de mais de US$ 500 bilhões.

Além disso, os projetos que floresceram ao longo da última década estão, finalmente, tornando-se totalmente operacionais.

Em tempos de pós-pandemia, em que crises econômicas e financeiras assombram o mercado global, a região é um verdadeiro oásis para o setor.

No entanto, ainda que as novas oportunidades sejam fáceis de se constatar, um desafio original ainda precisa ser destacado: construir cidades inteligentes não se trata apenas de concreto, asfalto e aplicativos.

Grandes referências de projetos de novas cidades inteligentes construídas do zero, as chamadas greenfields, como Masdar City, nos Emirados Árabes Unidos, ou a cidade de Songdo, na Coreia do Sul, foram, até certo ponto, malsucedidos, principalmente, devido a um conceito errado de como "construir" uma cidade.

A lição aprendida foi a de que não basta investir enormes recursos financeiros em infraestrutura e tecnologia de ponta. É necessário também esforço para projetar e construir comunidades.

O modelo City DNA, localizado no núcleo do The Neural, é inteiramente baseado na teoria City SmartUp, desenvolvida na Itália em 2016.

O conceito consiste na aplicação de uma mentalidade de gestão de startups para o desenvolvimento de políticas e projetos de smart city. Na prática, a ideia é afiar o "pitch" da cidade.

As pessoas têm uma conexão profunda com suas cidades, mais profunda e significativa do que com províncias, regiões ou países.

Entender o DNA da cidade e traduzi-lo em uma estratégia de desenvolvimento de uma cidade inteligente é fundamental para o sucesso de qualquer política ou projeto público.

Anteriormente, o sucesso de um projeto de cidade inteligente era uma questão de "lutar" por orçamento, por empréstimos a fundo perdido, por doações do governo federal ou de organizações internacionais. Mas esse jogo está quase acabando.

Os projetos acabaram por ser elaborados mais na tentativa de atender aos requisitos desses fundos do que na busca por soluções economicamente sustentáveis. As ideias contidas neles eram orientadas para as TIC, em vez de centradas nas pessoas.

Não importa de que ponto de vista analisamos o conceito: as pessoas devem ser a essência, o núcleo de qualquer estratégia.

Os problemas nos centros urbanos estão aumentando devido à migração e concentração populacional. Soluções inteligentes estão sendo implantadas para melhorar a vida das pessoas.

Assim, a palavra "cidadãos", que significa qualquer pessoa, direta ou indiretamente relacionada com a cidade, como residentes e até visitantes, deve estar no centro da estratégia de cidade inteligente, seguida de perto pela sustentabilidade econômica.

Imagine se as nossas cidades fossem pessoas, com quem elas pareceriam? Seriam do sexo masculino, feminino, sem gênero? Seriam jovens promissores ou adultos experientes? Quais seriam seus traços relevantes do passado e como poderíamos descrever o futuro que as esperam?

Parece bastante romantizado, mas é pura ciência aplicada.

Para entender a metodologia, vamos pegar Istambul como referência.

A antiga, bela e vibrante cidade da Turquia, antes chamada de Constantinopla, foi fundada há mais de 2.500 anos. Possui um vasto território de quase 2.600 quilômetros quadrados e uma enorme população de mais de 15 milhões de pessoas.

Apenas com alguns números, já é fácil entender seus desafios. Adicione à equação a mistura de religiões e a diversidade cultural da população, e chegaremos a uma matriz muito complexa.

Para fins criativos e olhando sob uma ótica de valorizar os atributos da cidade com a intensão de atrair investimentos externos, se Istambul fosse uma pessoa, esta seria uma das possíveis descrições que se encaixaria em um perfil , genérico, do povo de Istambul:

"Istambul é uma senhora elegante e corajosa, exaltada como uma das mais belas do mundo, com um passado famoso e glamoroso. Tem excelentes atributos: é honesta, organizada, chama a atenção dos outros e dá a impressão de que por mais experiente que seja, ela ainda é fresca, vibrante e tem um futuro longo e brilhante pela frente."

Uma semana de imersão na cidade foi necessária para chegar a esta "descrição de persona" final, interagindo com os stakeholders locais em sessões de brainstorming e fazendo um mergulho profundo na rotina da cidade.

É fácil perceber que a essência, a história de Istambul, está embutido em sua persona, refletindo de certa forma seu DNA.

Uma vez definido, o modelo de DNA da cidade ajudará aos políticos locais, formuladores de políticas públicas e a iniciativa privada, principalmente construtores e desenvolvedores de projetos urbanos, a enquadrar melhor as iniciativas de cidades inteligentes.

Uma ferramenta essencial que pode ajudar no mapeamento do DNA da cidade é a estratégia da persona, retratando os segmentos, grupos-alvo da cidade e auxiliando na definição dos arquétipos, padrões de comportamento que reconhecemos nos outros.

Esse conceito é amplamente utilizado em estratégias de marketing para entender o comportamento dos consumidores. No nosso caso, ele foi cuidadosamente adaptado para ser aplicado no branding da cidade.

Como startups, as cidades também precisam promover os projetos para obter o engajamento de todas as partes interessadas, os chamados stakeholders, sejam eles potenciais parceiros do setor privado ou os próprios cidadãos, contribuintes ansiosos por uma melhoria na qualidade de suas vidas.

O modelo de DNA da cidade pode ser aplicado ao planejamento urbano de novas cidades inteligentes, as greenfields, ou na requalificação das nossas cidades existentes.

A análise de DNA da cidade é a melhor maneira de começar a planejar projetos de cidades inteligentes. Ele servirá como uma diretriz para a estratégia de marca da cidade e atração de investimentos.

Por fim, o modelo de DNA da cidade também apoia a difícil tarefa de construção de comunidades e colabora para o aumento da percepção dos stakeholders em relação à evolução da cidade como uma smart city.

Por fim, anotem aí uma consideração importante que não me canso de repetir toda vez que estou com gestores públicos e políticos:

Não se trata do que estamos planejando, desenvolvendo e entregando à sociedade, mas sim, do que é percebido no final pelos cidadãos.

Já vi vários projetos excelentes, super-relevantes e focados na resolução de problemas reais serem percebidos de forma negativa e se transformarem em verdadeiros pesadelos políticos.

Uma boa estratégia de comunicação, feita sob medida e com base no DNA da cidade, é fundamental para o sucesso de longo prazo de qualquer projeto de cidade inteligente.

Assim fechamos a primeira camada do novo conceito de cidades inteligentes chamado de The Neural que apresentamos na semana passada.

Na próxima coluna, exploraremos as chamadas tecnologias fundamentais, ou de base, que são a hiperconectividade, a infraestrutura distribuída e a capacidade computacional.

Da nova geração de internet via constelação de satélites da empresa Starlink do bilionário Elon Musk aos computadores quânticos, capazes de processar operações 100 milhões de vezes mais rápido que qualquer computador "clássico", muita novidade está chegando para ajudar nossas cidades a se tornarem mais inteligentes.

Um abraço e até breve.