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Opinião

Conflito entre pai e mãe: como isso mexe com a criança e a ideia de família

Quais as consequências de haver um conflito entre pai e mãe em relação à autoridade perante os filhos ou quando divergirem em relação a determinado tema na frente das crianças? O que isso pode causar, tanto para a relação mãe e filho, como para marido e mulher? E, principalmente, o que acontece com a criança que vê seu pai desautorizando ordens da mãe?

Em tese quando esta recusa de reconhecimento e equidade acontece os primeiros prejudicados são as crianças, mas em segundo lugar, tem se tornado cada vez mais frequente que os pais que estão imersos em tais práticas se juntem para desautorizar outros pais e finalmente a escola.

Não é necessário que os pais concordem em todos os temas e decisões envolvidos na educação dos filhos. Pelo contrário, as crianças aprendem muito observando como os pais se comportam quando são contrariados e quando, no interior de um conflito, desautorizam o outro, invalidam argumentos em função de gênero, raça ou até mesmo condição de saúde mental.

Infelizmente, o caso mais típico e corrente ocorre quando o pai desautoriza a mãe na frente do filho ou da filha. Mas casos com situação inversa têm avançado, principalmente entre nossas classes médias. Situação de potencial reprodução de injustiça, naturalização da falta de equidade e transmissão de opressão. Às vezes as crianças aprendem a orquestrar o conflito dos pais, particularmente em situação de separação, para incentivar que eles briguem entre si, tirando proveitos e vantagens disso.

A construção de uma relação de respeito entre os pais, particularmente do pai para com a mãe, é essencial em vários sentidos:

  • Esta será uma referência para as futuras relações amorosas da criança, em que pese o fato de que o respeito é uma condição necessária mas não suficiente para o amor;
  • Esta será uma referência importante para a fixação do papel da mulher, seja para a menina seja para o menino;
  • O respeito designa a presença de uma fronteira simbólica, entre o público e o privado, entre a intimidade e o espaço social, entre si mesmo e o outro, entre a norma e sua transgressão. A perda ou ausência desta fronteira simbólica tende a fazer surgir "fronteiras reais ou imaginárias" em sua substituição, ou seja, baseadas não na palavra, mas na força, na violência ou na coerção;
  • O respeito, por ser efeito do valor simbólico da palavra, é algo que se transfere, ou seja, que passa de quem o tem para quem a ele se associa. Daí que ele seja um "afeto reflexivo", ou seja, quem demonstra e pratica respeito (pelo que nós reconhecemos como simbolicamente respeitável) adquire imediatamente nosso respeito. Inversamente, se alguém tem nosso respeito tendemos a respeitar o que esta pessoa respeita. Portanto o respeito do pai pela mãe é essencial também porque ensina como o respeito é transferível, como ele pode ser passado de uma pessoa para a outra.

O conflito de autoridade é um dos problemas incontornáveis de qualquer processo que envolva educação, criação e cuidado.

A rigor seria muito ruim que não houvesse conflito de autoridade dentro de um casal na criação de seus filhos. Isso indicaria para a criança que a autoridade não é um efeito construído em relações, que pode portanto ser perdida ou adquirida, em função da forma como as pessoas agem, mas ao contrário é uma propriedade inerente às pessoas, que tem ou não tem autoridade, independente de como se comportam.

No entanto, a divergência aberta entre os pais, assim como a congruência irrestrita (na forma de se conduzir diante dos filhos) destrói o elemento mais fundamental da relação de respeito-autoridade, ou seja, indica para os filhos que as diferenças individuais (o pai pensa em agir assim, a mãe pensa o contrário) impõem-se à tarefa comum entre eles, que é de transmitir algo aos filhos que é mais forte que suas disposições individuais: é o que chamamos de valores.

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O efeito deletério desta divergência ou convergência (no fundo um sintoma da impotência dos pais para negociar suas diferenças) é tão pior quanto menor for a criança e mais agudo entre três e cinco anos quando a criança está fazendo uma passagem crucial pela qual se transfere o respeito à lei familiar para o respeito à lei social (escola, por exemplo).

O caso do pai que desautoriza explicitamente as ordens da mãe pode conter alguns agravantes:

  • Quando esta desautorização é feita de modo injustificado, que não indica ou remete a uma autoridade à qual o próprio pai se submete (pai despótico);
  • Quando esta desautorização está simplesmente à serviço da fixação do pai como uma imagem amável, em detrimento da imagem odiosa que restaria para a mãe (pai permissivo);
  • Quando esta desautorização é apenas um capítulo da luta de forças entre pai e mãe em torno de quem tem mais poder dentro do casal (pai tirânico);
  • Quando esta desautorização efetiva apenas a própria desautorização e impotência que o pai sente em relação à seu próprio papel, ou seja, quando ele se coloca à obedecer irreflexivamente ordens ou mandatos recebidos de outrem, com os quais ele mantém relação de subserviência ou servidão (escolas, médicos, familiares, tradições, etc.) (pai impotente).

A busca do consenso é importantíssima não apenas pelos seus resultados finais, muitas vezes precários, instáveis e sujeitos a reformulação, mas pelo processo pelo qual o consenso se constitui. Neste processo são trocadas referências e discutidas as fontes e limites do que nos causa respeito, logo autoridade. As razões e motivos surgem assim como meios pelos quais nos apropriamos das leis e as tornamos nossas.

Mas atenção! Isso não significa que este processo todo deva necessariamente incluir os filhos.

É importante que a criança infira por si mesma partes "ocultas" ou "secretas" deste processo entre os pais. O respeito é uma consequência do fato de que entre pais e filhos a situação é assimétrica e potencialmente coercitiva. Mas se a coerção for sempre o meio pelo qual o conflito se resolve isso implica em perda gradual de autoridade, ou seja, quando os meios de coerção se forem, junto com eles irá embora a autoridade.

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Ora, isso se aplica também às inúmeras formas pelas quais um pai pode desautorizar uma mãe por meio de coerção: dinheiro, chantagem, violência, intimidação, sevícias verbais, imputação de culpa ou rebaixamento moral. Conflitos resolvidos, externados ou tratados por meio de coerções deste tipo fazem com que os envolvidos aprendam, ao final e ao cabo, a obedecer sem concordar ou a concordar sem reconhecer o próprio consenso como valor comum. Resultado: a autoridade será cobiçada apenas e tão somente porque servirá de meio para vingar-se da humilhação sofrida, o conflito será sinônimo de confrontação e a diferença será apenas um obstáculo a ser vencido (e não algo que pode nos enriquecer).

A situação para a mãe costuma oferecer uma alternativa dramática: ou confirma a arbitrariedade paterna (mesmo contra sua vontade mais íntima) e certifica assim sua própria opressão, mas garante a permanência de algum respeito pelo pai (mesmo que em uma forma primitiva) ou recusa a arbitrariedade paterna e neste caso terá que mostrar que sua própria posição não é igualmente arbitrária.

Isso abre uma porta para a criança que é de "jogar um pai contra o outro" de tal forma a extrair os benefícios que na ocasião lhe convém. Neste caso a criança terá um benefício (mesmo que primitivo) que é o de colocar em ação uma espécie de "consenso móvel", ora com o pai, ora com a mãe. Em outras palavras, a situação não admite uma solução sem perdas substantivas.

Um caminho plausível é de explicar claramente para a criança porque o pai está equivocado, e onde (na forma, no conteúdo, na coerência, nos motivos ou razões). É uma descoberta importante para os filhos que seus pais possam se enganar, equivocar e mesmo francamente errar. Melhor ainda quando os pais podem recuar, voltar atrás ou pedir desculpas (verdadeiras) e quiçá reparar seus erros.

Infelizmente a maior parte dos pais acham que isso vai retirar sua autoridade, quando se dá o exato contrário, "voltar atrás" "rever uma decisão" (desde que não seja a regra) é justamente o que faz a fronteira do respeito ser uma fronteira simbólica. Melhor ainda quando esta desautorização puder ser revista "consensualmente pelos pais" e daí transmitida para a criança.

A criança não só aproveita como, em geral, é extremamente sagaz na localização de fissuras ou diferenças entre os pais, muitas vezes antes mesmo que os próprios pais percebam sua existência.

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O caminho mais comum, por um lado inevitável (posto que sempre haverá diferenças de fato entre os pais), mas que por outro exige uma resposta atenta dos pais, é que a criança comece a "orquestrar" o conflito entre os pais a seu favor.

Se o pai proíbe a TV, mas sai de casa logo em seguida, a criança poderá "ingenuamente" pedir autorização expressa da mãe para assistir a seu programa preferido (omitindo a ordem paterna). O pai volta e vê a filha diante da TV e esta lhe dirige um imediato "... mas a mamãe deixou." Seria simples imaginar que uma conversa entre os pais resolveria a questão.

Sim, quando a autoridade da mãe é reforçada pelo pai, isso cria as condições ótimas para a transmissão do respeito e da autonomia pela criança, desde que a autoridade da mãe seja de fato reconhecida pelo pai, ou seja, que esta lhe pareça legítima. Que este reforço não seja apenas um sinal de indiferença, falta de envolvimento ou desconhecimento da complexidade envolvida para gerar esta autoridade do lado da mãe. Que o reconhecimento desta autoridade não seja apenas o reconhecimento de uma autoridade anônima que se atualiza na mãe, mas também porque esta é reconhecida como autoridade na qual o pai deposita confiança e, por que não dizer, algum amor.

O conflito permanente e mal tratado entre os pais, especialmente através da desautorização de um dos pais, ou da desautorização mútua, tem consequências ruins para todos da família, e pior, muitas vezes para a formação de futuras famílias pelos filhos envolvidos.

A opressão entre gêneros, o preconceito e o sentimento de impotência permanente, ou de onipotência destrutiva são efeitos comuns quando este tipo de situação é predominante.

Lembro que uma família é um sistema de tratamento, formação e circulação de conflitos. Nada menos estruturado, e mais infeliz do que uma família sem conflitos. Em geral, estas famílias são apenas casos de não família, ou seja, arranjos econômica ou sexualmente produtivos, contratos de sobrevivência ou prestação de serviços comuns, sem de fato formação de laços familiares.

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A exposição de divergências para incluir os filhos em disputas que referem-se ao casal, a intromissão dos filhos nos assuntos cuja decisão final é dos pais (no sentido de fazer os filhos se encarregarem pela função dos pais), a desautorização em suas diversas formas, sinalizam apenas formas precárias ou preguiçosas de lidar com conflitos, ou de fugir deles (por deslocamento).

No fundo, é isso que se ensina (ou não se ensina) em uma família: inventar um conflito comum ou remetê-lo a indivíduos que serão culpados ou esmagados por seus próprios ideais, oprimindo outros indivíduos.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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