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Opinião

Ciência feita hoje se tornou a gestora exclusiva dos saberes, e isso é ruim

Recentemente se reaqueceu a discussão sobre o estatuto científico ou pseudocientífico de diferentes práticas e saberes. Há um forte precedente no caso brasileiro que ajuda a entender isso.

Durante o governo Bolsonaro estratégias públicas envolvendo vacinação, recomendação de tratamentos e demais questões que diziam respeito ao enfrentamento da covid foram tomadas em franco e aberto desrespeito a inúmeros consensos científicos, violando até mesmo recomendações diretas e imediatas das autoridades sanitárias internacionais, expressas pela Organização Mundial de Saúde.

Mas este evento não encontrou respaldo apenas nestas circunstâncias políticas, mas até mesmo tais circunstâncias ligam-se a uma baixa capilaridade do ensino e da percepção do que vem a ser ciência no Brasil.

Fruto deste estado de coisas é a confusão entre ciência como prática de produção de conhecimento e tecnologia, como aplicação deste saber a produção de objetos, práticas e serviços.

Uma pesquisa anterior ao surgimento do bolsonarismo verificava que os brasileiros "dizem" se interessar mais por ciência do que por esporte, política ou arte, mas apenas 6% conseguem se lembrar de ao menos um nome de pesquisador no país.

A incoerência relativa é por si só um dado. Queremos ser percebidos como admiradores e respeitadores da ciência. Esta é a resposta padrão desejável para um anônimo que te interpela na rua sobre este assunto.

Outro fato interessante é que apenas 13% conseguiam apontar "onde" a ciência acontece, em termos de instituições, universidades e centros de pesquisa.

Também se mostrava elevado o grau de interesse ou conhecimento sobre como se poderia adquirir mais conhecimento científico.

Em 2015, nossa percepção era de que a ciência traz mais benefícios do que malefícios, em números semelhantes aos europeus e americanos.

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Em 2023, no contexto da reforma tributária, se discute a fixação da verba destinada para a pesquisa e universidades, atualmente vinculada ao ICMS estadual.

Por isso se espera alguma coerência com o fato de que mais da metade dos brasileiros concorda fortemente que o investimento em pesquisa, principalmente médica e climática, é decisiva para o país. Mais de 80% das pessoas defendiam mais verbas para pesquisa. Ademais o nível de confiança nos cientistas supera o de jornalistas, médicos e religiosos.

Ora, o saber da ciência possui autoridade, mas seu poder efetivo depende da técnica, dos meios de ação a partir deste saber.

O que caracteriza a ciência contemporânea é sua incorporação da tecnologia para legitimar sua própria prática.

São efeitos conhecidos desta tecnociência:

  • Repositórios on-line de revistas;
  • Mensuração do impacto de citações;
  • Sistemas complexos de avaliação entre pares;
  • Concorrência entre revistas científicas e seus critérios cada vez mais estritos;
  • Sem falar na distribuição dos recursos financeiros, dependendo do ranking universitário, da área e da demanda social, da estratégia ou das políticas públicas;
  • Esquecimento da ciência básica;
  • Especialização precoce;
  • Segmentação excessiva.
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Hoje também se verifica uma "onda pró-científica" resultante da crítica e do enfrentamento do negacionismo [1].

Todos os itens da pesquisa de 2015 "melhoraram".

  • Mais interesse em saber como funcionam as universidades e museus;
  • Mais gente acredita nos cientistas, depois de 2019, quando sua credibilidade caiu para quarto lugar (atrás de jornalistas e médicos);
  • Percepção da necessidade do aumento de investimento em universidades, maior visibilidade de instituições (especialmente Butantan e Fiocruz).

Mas agora o fato "paradoxal" é que as classes mais privilegiadas são as que menos aderem a esta série:

(...) parte expressiva do mesmo perfil (mais ricos, com ensino superior, brancos e homens), em questão sobre vacinação (LOP 5, de 2022), declarou não seguir as recomendações da ciência, pois não tomaram vacina ou tomaram apenas uma dose (sem eficácia necessária): 41% dos mais ricos, 32% dos com ensino superior, 29% dos brancos e 29% dos homens.

[2]

Lógica informal, vieses cognitivos e argumentação tornaram-se tópicos de interesse.

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Voltamos assim a uma discussão sobre o estatuto da ciência, que, aliás, também prosperou na esteira de reflexões sobre os totalitarismos dos anos 1930.

Poucos se lembram que as pesquisas de Popper sobre teoria da ciência, incluindo o problema da demarcação entre ciência e não ciência, bem como entre ciência e pseudociência, ocorre no contexto de sua colaboração com Friedrich Hayek, pensador central do neoliberalismo, entendido como teoria econômica de reação às planificações autoritárias.

Resulta desta aliança um antídoto pelo qual o único conhecimento digno de crédito e autoridade se expresse em:

  • Uma epistemologia monista (que acredita em um único método);
  • Unicista (que acredita em uma só Ciência);
  • Que repudia sua própria história (acreditando apenas em seu último capítulo);
  • Que desqualifica a cientificidade das ciências humanas;
  • Que subalterniza os saberes que não se expressam em sua linguagem e;
  • Que se globaliza em torno de consensos e critérios normativos em nome de um sujeito sem raça, sem gênero, sem etnia, sem classe, sem interesses.

Baseada exclusivamente em propriedades formais do método, em enunciados verificáveis, proposições falseáveis, tanto a epistemologia de Popper quanto o neoliberalismo de Hayek dependem de uma teoria da mente, capaz de ligar de modo universal estados psicológicos dos sujeitos, tais como certeza, confiança e crença com afirmações, verdadeiras ou falsas, sobre o mundo, a natureza ou os fatos.

Evidência, seja na tradição de Descartes, seja na linhagem de Hume, não são apenas acúmulos de fatos, ou reforço de convicções.

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Ora, a novidade nesta conversa não é o retorno aos anos 1960, nem a reedição do espírito de iluminismo terapêutico, como antídoto preventivo contra a barbárie regressiva, como uma espécie de reforma cultural do intelecto, mas a elevação da ciência a uma espécie de tecnologia anônima, que se conforma a ser apenas uma gestora dos saberes.

Percebida como administradora exclusiva, como monopólio das regras de produção de conhecimento e uso legítimo da razão, "A" ciência será odiada pela sua arrogância e por seu desprezo pelas outras formas de racionalidade, ainda que não científicas nestes termos.

Muitas delas são chamadas apenas de pseudociências, como se todo o cosmos universal e toda razão consistisse em substituir o senso comum pela verdadeira ordem de conhecimento, real e científica.

Curiosamente esta soberania da ciência é menosprezada pelas classes mais educadas (que parecem perceber melhor como ela não é exatamente neutra e desinteressada) do que pelas classes populares que ainda acreditam que formas mais elevadas de saber justificam formas elevadas de poder.

Portanto, se queremos que as políticas públicas aceitem, incorporem e levem em conta as melhores evidências científicas precisamos urgentemente tratar não apenas as pseudociências, mas as pseudotecnologias científicas.

Esta ideia de que as práticas humanas, com seus dilemas éticos, com os seus impasses de decisão e escolha, possam ser tratados por teorias "automáticas" que excluem qualquer dúvida ou consideração feita pelos "mortais", torna-se um alvo fácil para o ressentimento cognitivo.

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REFERÊNCIA

[1] Sígolo, V.M, Percassi, J., Arantes, P.F, Sano, H., Moura, M., Foguel, D., Smaili, S.S, Chioro, A.. A onda pró-ciência em tempos de negacionismo: percepção da sociedade brasileira sobre ciência, cientistas e universidades na pandemia da Covid-19. Cien Saude Colet

[2] Idem

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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