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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Como entender nosso 'relógio de afetos' ajuda a combater o discurso de ódio

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Imagem: Reprodução

14/03/2023 04h00

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Começaram as atividades do grupo de trabalho sobre o enfrentamento do discurso de ódio e extremismos, constituído pelo ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania Silvio Almeida e do qual estou participando junto com mais de trinta especialistas e representantes da sociedade.

Entendo que temos dois desafios.

O primeiro é qualificar o conceito de discurso de ódio a ponto de desdobrar estratégias de reversão, mitigamento e manejo de sua ocorrência social e digital.

É possível que se passe com a noção de discurso de ódio algo análogo ao que Santo Agostinho dizia do tempo, ou seja:

Quando não me perguntam o que é o tempo eu sei o que ele é, mas quando me perguntam o que é o tempo eu já não sei dizer o que ele é.

Em outras palavras, todos aqueles que já foram ultrajados, vilipendiados ou humilhados por falas coletivas. Falas coletivas que muitas vezes marcam traumaticamente o destino de um sujeito.

Os efeitos do discurso de ódio, às vezes, operam de forma crônica e continuada, outras vezes de forma aguda.

Um único ataque orquestrado, sem direito a defesa ou correção pode alterar para sempre o sentido de justiça para alguém. Isso decorre do fato de que chamamos discurso de ódio o ódio praticado em situação de covardia moral.

Ora, todas as vezes que o Estado tenta regular a moral, os riscos de instrumentalização de poder sobem exponencialmente.

Contudo, há um fator menos visível, do qual somos desviados quando nos deparamos com palavras fortes e de impacto semântico imediato como "ódio", "discurso" e 'extremismo", que justamente convocam sentido imediatos e reativos, como se todo mundo soubesse, porque "experimentou na carne".

Uma abordagem alternativa ao problema de Santo Agostinho sobre o tempo seria dizer:

Sabemos e não sabemos dizer o que é o tempo, podemos dizer que o tempo é o que os relógios marcam.

Ou seja, existe o ódio e existe o discurso, mas existem tecnologias de ódio e discursos. Talvez estas tecnologias definam melhor o que queremos regular do que a intensidade, o objeto ou a tipificação do afeto.

Ofender alguém na frente de uma tela de televisão, porque o sujeito perdeu um pênalti numa Copa do Mundo, parece diferente de publicar um livro a respeito ou agregar uma campanha na internet para cancelar o jogador.

Por outro lado, pequenas e aparentemente inofensivas piadas sobre o ocorrido, podem gradualmente traumatizar alguém de forma irrecuperável.

Outras vezes, um mero pronunciamento oficial, ainda que expresso na anódina linguagem administrativa, pode potencializar cargas tóxicas de ódio.

Tecnologias do ódio são maneiras de intervir nas regulações "naturais" dos afetos.

Por exemplo, quando plataformas digitais que empregam milhares de entregadores de comida relacionam-se com seus funcionários de forma a que nenhum contato seja efetivado do entregador com a empresa, a não ser pelos canais definidos pela própria empresa. Isso torna a relação empregador-funcionário imune a qualquer manifestação de insatisfação por parte dos empregados.

Tal controle dos processos de comunicação —que todo aquele que já se relacionou com grandes companhias telefônicas, bancos digitais, planos de saúde e empresas de telemarketing conhece— são dispositivos evidentes de incitação ao ódio.

Muitos temem que a inteligência artificial, assim como dispositivos de suporte e mediação "dialogais", tipo ChatGPT, sejam usados apenas para substituir verdadeiras mediações, dotadas de potência decisional e transformativa.

Ou seja, relógios são formas de regular nossa experiência do tempo, que outrora foi mediada pelas variações de clima e luminosidade, com respeito potencial aos estados de cansaço e vigília de cada um, bem como pelos ritos comunitários.

Assim também decidimos tanto por padronização quanto por determinantes narrativos e culturais, quais são as situações nas quais afetos, emoções e sentimentos são sancionados socialmente.

Nos processos formais e informais de educação, "aprendemos", por exemplo, que:

  • na situação (1) temos razão de sentir raiva
  • na situação (2) a alegria não deve ser expressa sem relativa inibição
  • na situação (3) precisamos ajustar nossa expressão de afetos às dos nossos interlocutores
  • mas na situação (4) é permitido acirrar dissonâncias e incongruências entre nosso afeto e dos outros

Ou seja, todos interiorizamos "relógios de afetos", mas ainda assim alguns estão adiantados e outros atrasados, sem falar em pessoas que vivem em fusos horários irredutíveis.

Neste contexto podemos imaginar que uma política pública nesta matéria não vai regular a produção e uso de relógios, mas agir sobre as mediações que já regulam ou dificultam a regulação social dos afetos.

Um exemplo simples e que deve ser tomado mais como caso genérico de uma regra a ser aplicada.

Pelo que foi dito antes, uma das condições desfavoráveis para a regulação do ódio é a interpolações de condições nas quais a estrutura dialogal se rompe, ou ainda, entre os interlocutores vigora uma condição de anonimato.

Quando falamos em nome de um personagem sem relação com aquele que fala aumenta o nível de inconsequência daquele de fala. Posso xingar, abusar, cancelar e usar a linguagem de forma "extrema" porque nenhuma consequência poderá retornar sobre o sujeito por aquilo que ele diz. E consequência aqui não quer dizer punição, mas partilha social de afetos.

Com isso, nenhuma pessoa que eu admiro, respeito ou convivo poderá intervir no uso de linguagem que estou a praticar. Nenhuma "pessoalidade" ou efeito sobre minha "imagem" local ou ampliada será regulado por aqueles que eu respeito e gosto, assim como porque aqueles que eu detesto e odeio.

Qualquer afeto sem regulação torna-se potencialmente problemático, não só para a salubridade do espaço público, mas para a saúde mental da própria pessoa.

Logo, falas em situação de anonimato deviam ser evitadas, mas não grafites em muros, protestos políticos e situações nas quais o anonimato é de fato protetivo para o sujeito.

Isso não diz respeito a uma política digital, educacional ou política, mas a um princípio genérico que não se baseia em coibir o ódio mas em estimular a mediação, a regulação e a implicação da fala em espaço público.

No relógio da história nem todos os ponteiros marcam a mesma hora, e nem precisariam. Desde que possamos reconhecer o tempo em que cada um está.