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OPINIÃO

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Censura a filme de Gentili é manual para ter efeito contrário ao pretendido

Danilo Gentili em cena de "Como se Tornar o Pior Aluno da Escola", filme que foi censurado pelo governo - Divulgação
Danilo Gentili em cena de "Como se Tornar o Pior Aluno da Escola", filme que foi censurado pelo governo Imagem: Divulgação

18/03/2022 04h00

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O recente episódio de censura retrospectiva contra "Como se Tornar o Pior Aluno da Escola" (Fabrício Bittar, 2017), baseado em um livro do comediante Danilo Gentili, que também produziu, fez o roteiro e protagoniza o filme, não apenas ilumina o funcionamento regressivo do pensamento cultural do governo, mas também é uma espécie de manual de como produzir os efeitos contrários ao que se pretende, ou pior, que se diz pretender.

Por exemplo, se o título desta coluna fosse: "como promover a pedofilia e o assédio", ele seria um clickbait —ou seja, uma chamada que funciona como isca para você clicar na matéria porque ela seria, digamos assim, contraintuitiva.

Em um momento no qual queremos combater o assédio sexual e a prevenir a pedofilia apresentar um título potencializando crimes sugere um manual de instruções produz "engajamento".

O clickbait descende de uma das estratégias críticas mais antigas que se conhece: a ironia.

Lembremos que a ironia é a primeira parte do método socrático, por meio do qual perguntas nos fazem perceber que sabemos menos do que pensamos que sabemos, que nossas opiniões são carentes de fundamentos, razões e que demandam mais justificativas do que pensávamos antes de sermos expostos a ironia.

Mas quando a ironia dá certo sobrevém o segundo tempo do método que é a maiêutica, ou seja, a arte de "dar à luz" as ideias. Nela o filósofo mostra, novamente por meio de perguntas, como o sujeito sabia muito mais do que ele pensava que sabia.

O exemplo mais clássico deste processo se encontra no diálogo Menon, de Platão, onde o problema da duplicação do quadrado é inicialmente resolvido equivocadamente, pela duplicação do tamanho do lado e depois pela divisão do resultado inicialmente falso.

Ou seja, o método das hipóteses supõe que o erro faz parte do acerto, que o engano é parte da certeza ou que a mentira compõe o processo de construção da verdade.

O filme censurado pertence a um gênero popular da ironia, ou seja, a paródia. Neste caso é o exagero do erro que nos serve para estranhar a própria realidade.

A paródia pode ter uma função crítica ou meramente reproduzir preconceitos de modo ampliado. Neste caso, dois adolescentes encontram no banheiro de uma escola tradicional um manual para perturbar o cotidiano e tornar a vida mais divertida e intensa, rompendo assim a falta de sentido e o tédio do ambiente disciplinar reinante.

O filme conta com a participação de Carlos Villagrán, o Kiko do seriado mexicano "Chaves", que se tornou uma espécie de referência retrospectiva para a criação de memes na internet.

A baixa qualidade da produção, a caracterização paródica dos personagens e até mesmo a distância entre a cultura mexicana e a brasileira, tornaram Chaves um ícone do nonsense e do humor escrachado que teria "preparado a cama" para a retórica bolsonarista da violência do bate e assopra.

É possível que "Chaves", que igualmente satiriza eventos escolares e adolescentes, tenha caído nas graças da internet brasileira também pela sua "antiguidade".

Rodado entre 1973 e 1978, ele exprimia um humor inocente, mas "selvagem" com seus adultos vestidos de criança. Um tempo onde não tínhamos que tomar tanto cuidado com as palavras, onde as coisas eram ditas de forma tosca e ainda assim verdadeira. O tempo da adolescência mítica de nossos pais, que eles obviamente esqueceram para se tornar estes dinossauros "pré-internet" que hoje gostamos de satirizar.

Clickbait, link bait e engagement bait são artimanhas para atrair para "X" e entregar "Y". Eles funcionam em um mundo de títulos, que se tornam uma paisagem cinzenta, no meio da qual algo se destaca, pelo seu efeito inusitado, polêmico ou contraintuitivo.

Comentários erráticos, trolagens e até mesmo certos cancelamentos funcionam pelo mesmo mecanismo da ironia degradada sem maiêutica.

A censura que pretende ir contra o assédio e a pedofilia, mas que na verdade colabora para sua propagação, funciona da seguinte maneira:

  1. Convença as pessoas que as crianças pensam apenas por obediência e imitação.
    Se elas forem expostas a certas imagens tomarão aquilo como regra de ação.
    Elas não são capazes de separar fatos e ficções, hipóteses e realidade. Portanto, o único jeito de protegê-las não é conversando sobre as razões desta periculosidade, mas afastando as imagens perigosas e nocivas.
    Afinal ficção é realidade a ser imitada.
  2. Ao ensinar que nós somos seres imitativos e não críticos eu aprendo também que se eu vi, sofri ou acompanhei assédio dentro de minha casa ou da minha escola, praticado por familiares ou conhecidos, eu mesmo estou autorizado e justificado a "automática e mecanicamente" reproduzi-lo sobre os outros.
    Afinal, educação é imitação.
  3. Diante de um acontecimento ambíguo, perturbador ou duvidoso a resposta correta é: silencie, apague e censure.
    Se aconteceu, basta negar a existência. Daí que se sua filha ou filho for exposto a um assédio ele vai aprender a ficar em silêncio e censurar-se.
    Ao final você vai perguntar: onde foi que eu errei?
    E a criança vai reagir como você ensinou: com culpa e vergonha.
  4. Permita, tolere e incentive piadas maliciosas ou misóginas, toques inoportunos e carícias ambíguas, propostas indecorosas e tratamento ofensivo.
    Ensine que se acontecer uma reação adversa basta responder: eu só estava brincando, isso não era sério, não precisa ficar ofendida ... é normal.
    Em seguida redija uma nova versão da proposta.
    Aprenda com o discurso do governo.
    Ameace com propostas indecorosas, inclusive de censura a manifestações artísticas, se a reação pública for demasiadamente contrária ou existirem objeções jurídicas diga que foi engano ou "jeito de dizer".
    Escreva outra proposta e corrija os detalhes que "pegaram mal".
    Repita isso até cansar porque uma hora as pessoas vão se acostumar e no final passam a aceitar como natural.
  5. Use sempre uma estratégia visual pornográfica.
    Recorte uma cena, retire ela de seu contexto, destitua seu poder de ficção.
    Reduza tudo a uma cena, uma frase, uma imagem. Por exemplo, aquela na qual um professor convida dois garotos para masturbá-lo. Exclua o fato de que os dois garotos não aceitam o convite.
    É preciso usar o princípio da aprendizagem mimética apenas quando convém, pois nunca aprendemos com contraexemplos.
    Foque no título, ampute a matéria. Invista no clamor de punição imediata.
    Estimule o cancelamento reativo e sem complexidade narrativa. Ou você quer "passar o pano" para o assediador?
    Ao final, a censura age exatamente como a linguagem pornográfica mais pobre e imbecilizante: direto ao ponto, foco na cena e gozo rápido.
  6. Não ataque o humor preconceituoso contra mulheres, homossexuais e demais momentos escatológicos do filme.
    Selecione apenas um personagem, relativamente secundário, por exemplo, o professor Cristiano, representado por Fábio Porchat.
    Assim você poderá explorar a falta de distinção entre ficção e realidade, entre autor e personagem, que você ensinou a nossas crianças.
    Ao privá-las da crítica do valor das imagens, do sentido da montagem ou da edição você poderá manipular a versão de realidade que mais lhe interesse.
    Isso lhe dará a oportunidade de atacar seletivamente o ator, porque ele pode ser seu desafeto político.
  7. Torne o ato de censura um grande impulsionador comercial.
    Desvie-se dos assuntos importantes e crie a sensação de que algo está sendo feito para mudar o sentido do mundo.
    Faça o filme censurado chegar aos primeiros lugares na lista dos mais vistos em streaming.
    Assim, pelo princípio da aprendizagem mimética, mais pessoas cobiçarão ver o filme e mais pessoas terão contato com suas imagens de incitação à pedofilia e ao assédio.
    Ao mesmo tempo você sairá com a boa imagem de quem está fazendo seu trabalho de purificação moral, ainda que esteja promovendo e incentivando, ainda mais, a deseducação sexual do brasileiro.