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Blog do Dunker

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Meu avô ajudou a criar o Chicabon e isso me ensinou sobre novas tecnologias

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Imagem: Freepik

28/04/2021 13h30

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Na casa de minha avó a disputa era diária, centímetro a centímetro. Ele com o Estadão, cheio de colunistas sérios como o Pedreira e Simonsen, ela vinha com a Folha, que naquele tempo tinha gente como Boris Casoy e Paulo Francis. Quando chegava tarde para o almoço tinha que trazer o Jornal da Tarde, que às vezes desempatava o jogo.

Ele tinha sido um dos primeiros executivos da Kibon, nos tempos da General Foods, e podia ser considerado um avô imbatível em termos de histórias e de recursos como a "nova lata de sorvete que estamos testando neste verão". Ela não ficava para trás com histórias da Segunda Guerra, atravessando a Polônia comendo cenouras ou fugindo dos russos no último trem antes do bombardeio a Gdansk.

De todas a histórias de meu segundo avô (o único avô paterno que conheci porque o primeiro e natural tinha desaparecido na batalha de Gomel, quando os alemães quase chegaram a Moscou), oops outra história de minha avó, volta...

Das histórias de meu avô a que me parecia mais incrível era sobre a implantação das máquinas de refrigeração nos anos 1950. Naquela época, o interior de São Paulo ainda não dispunha de geladeiras elétricas, mas ainda havia as sorveterias que batiam o sorvete na hora e eram o ponto de encontro natural para o footing na pracinha. Em torno do coreto os meninos andavam num sentido e as meninas em outro. Quando dava match, rolava uma sorveteria. A arte da aquisição partilhada desta iguaria marcou a vida de muitos casais, antes da geração de meus pais, que assistiram à histórica chegada do banana split, um pouco antes ou depois do hot dog.

Mas o fato é que meu avô junto com seu braço direito e o tal chefe Kent Lutty inventaram de dar uma geladeira para cada sorveteria do interior de São Paulo. É claro que junto com o aparelho iam-se lá algumas amostras do sorvete industrializado.

Depois de algum tempo a marcha do capitalismo tinha transformado as antigas batedeiras de sorvete em caixas e atendentes, abrindo espaço para a venda de doces e outros quitutes.

Mas havia uma cidade, não lembro exatamente qual, que resistiu porque a sorveteira, Dona Chica, era muito querida de todos e a cidade se encheu de brios defendendo que sorvete bom era feito na hora e na mão mesmo.

Nisso a coisa tinha dado tão certo que os dois fizeram uma adaptação da ideia para entrar com o negócio das geladeiras no Rio de Janeiro, que naquela época tinha a orla povoada de sorveterias clássicas e populares com seus frequentadores favoritos.

Neste caso, em vez da geladeira ir até o vendedor, por que não colocar um gelo no carrinho e vender na praia mesmo, mais ou menos como se fazia no interior paulista? Ou seja, a estratégia vitoriosa não consistiu apenas na substituição de uma tecnologia tradicional por outra mais moderna, mas também o reconhecimento do valor da venda pessoal, "a domicílio".

Por isso eles passaram a incluir, no tal carrinho de mão, quitutes de três tipos: Ki-Suco, Jujuba e Delicado. Eles aprenderam que era possível fazer uma extensão de linha do sorvete para os doces e estavam aplicando a ideia nas praias cariocas. Um tempo depois o braço direito de meu avô largou a firma só para produzir estes acessórios e se deu bem.

Enquanto isso, não sei bem se em Sorocaba ou Araraquara, a Dona Chica resistia. Foi aí que meu avô teve a ideia de parar de brigar com a tradição e aceitá-la como parte do jogo.

Desenvolveram um novo sorvete que homenageava a Dona Chica, o "Chica-Bom" de chocolate, que logo se tornaria um sucesso, imbatível. Deste jeito foi possível aceitar a geladeira. Dona Chica vendia ainda mais sorvetes e se tornava a rainha geral e soberana do sorvete paulista.

Minha avó ouvia calada e, logo em seguida, defendia que aquilo não tinha sido muito certo com a Dona Chica. Ele sacava o "The Economist", ela vinha com "Paris Match" e "Der Spiegel". A luta continuava no velho apartamento da Visconde de Ouro Preto. Ambos só coincidiam numa coisa: entrando o neto querido na USP ele estava em perigo de se tornar um comunista.

Ao contrário da vacina da ignorância, hoje fartamente distribuída contra o perigo vermelho, no entendimento deles a melhor prevenção era informação massiva combinada com controvérsia e polêmica. Por isso só rolava uma "grana" extra, depois do almoço, se eu mostrasse que tinha lido e entendido: os dois lados.

Lembrei muito deles ao ler o especial de domingo sobre os 100 anos da Folha. Um passeio de história coletiva e pessoal, materialmente repetido pelo sabor das páginas de papel virando uma a uma, manhã a manhã. Um acúmulo de títulos e imagens que fazem a gente lembrar da própria vida, com certas legendas: a derrota da seleção de 1982, as Diretas Já, Collor e tudo mais. Junto vai vindo a história dos avanços, das mudanças nas técnicas produtivas, o surgimento do Manual de Redação e Estilo.

Mas falta, na época, da história sobre da chegada do UOL. A primeira a criar a mágica das BBSs, dos chats e dos sinais discados a telefone. Lembro das noites jogando Xadrez UOL (um clube de xadrez com ranking que nem sei mais se existe), sem falar em uma das coisas que jamais abro mão: chrisdunker@uol.com.br. Ou seja, enquanto eles brigavam de Estadão versus Folha eu chegava com o meu UOL...

A assimilação de tecnologia pode fazer desaparecer os antigos negócios, mas pode fazer com que eles caminhem em paralelo durante algum tempo.

Se deixamos a Dona Chica em paz, durante algum tempo, pode ser que ela nos torne vendedores mais sagazes de geladeiras em vez de entrar numa fria movidos pela convicção de que o progresso tem que acelerar e cada vez mais rápido.

Esta também é uma história que mostra como entre dois competidores existe uma espécie de fusão de mundos, que se interpenetram e se interdependem. Adversários externos e adversários internos têm uma curiosa regra de composição, e ambos precisam estar em um certo acordo para que as coisas realmente mudem.

Com dizia Hegel, o relógio da história não marca a mesma hora em todos os seus quadrantes, ou seja, entre conservadores e progressistas a diferença pode estar na velocidade com qual queremos viver ou destruir.