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OPINIÃO

Calcinha Preta ajudou a modernizar o forró e representou o 'Brasil real'

Sergio Martins

Colaboração para Splash

24/02/2022 10h23

"Mas quem é Paula Abelha?", me pergunta um amigo de longa data quando o comento o estado de saúde da cantora, que infelizmente morreu nesta quarta-feira, dia 23 de fevereiro, em decorrência de um quadro de comprometimento multissistêmico. É uma indagação mais comum do que se imagina: em tempos de globalização, nos aproximamos muito da cena cultural da Europa e dos Estados Unidos e mal conseguimos entender o Brasil real. E o Brasil real consome Calcinha Preta, grupo do qual Paulinha era uma das vocalistas principais, com a mesma voracidade com a qual chorava os temas de sofrência de uma Marília Mendonça - cuja morte, em novembro de 2021, também causou esse tipo de indagação por parte de muita gente que conheço.

Os detratores do Calcinha Preta costumam classificar o grupo como "forró de plástico", ou seja, um tipo de "rastapé" que traz pouca semelhança com o gênero eternizado por gente como Luiz Gonzaga, Dominguinhos e Anastácia. É preciso entender, contudo, as transformações pelas quais o ritmo passou desde o início dos anos 90. Naquele período, o cearense Emanuel Gurgel de Queiróz decidiu investir numa versão atualizada do forró. Ele incluiu instrumentos eletrônicos para "encorpar" a sonoridade da sanfona, da zabumba e do triângulo. O Mastruz com Leite foi o grupo primogênito da prole de Gurgel, que hoje possui cinco bandas e até uma estação de rádio. Em alguns casos, o teclado passou a substituir a tríade instrumental do forró. Frank Aguiar, conhecido como o "Cãozinho dos Teclados" (dá uma espécie de uivo para introduzir as canções) trocou a sanfona por uma dupla de cantoras/dançarinas e fez a parte instrumental no teclado. Uma estratégia que rendeu artistas como Lairton dos Teclados, sucesso no início dos anos 2000 com a balada Morango do Nordeste.

Natural de Sergipe, o Calcinha Preta integra a segunda geração do novo forró. As guitarras passam para o primeiro plano, com distorção e solos que se assemelham a de um show de heavy metal. A estrutura das apresentações lembra muito a dos artistas de axé music: muita parafernália, explosões e o tradicional "tira o pé do chão" para animar o público. O gênero baiano, aliás, exportou outro know how para os empresários atuais do forró: vocalistas e músicos são assalariados e podem ser trocados com a mesma velocidade com a qual um consumidor de plataforma de streaming se mantém fiel à sua música favorita - tudo é efêmero, o que vale é a força da marca. A própria Paulinha saiu algumas vezes do Calcinha Preta para formar um projeto solo. Ela integrou o grupo de 1998 a 2010, depois retornou em 2014 e saiu em 2016, e por fim voltou pela terceira e última vez em 2018.

Bandas com guitarras distorcidas pedem rock. E muitos dos sucessos do Calcinha Preta eram adaptações - às vezes, sem pedir autorização para os autores - de hits de classic rock ou do heavy metal. Paulinha, por exemplo, era uma versão de Without You, sucesso do grupo Badfinger e que estourou nos anos 1970 na voz de Harry Nilsson e nos anos 1990 com Mariah Carey. Dust in the Wind, do conjunto pop progressivo Kansas, se tornou Louca por Ti. E o que dizer de Agora Estou Sofrendo, adaptação de Bleeding Heart, do grupo brasileiro de metal melódico Angra? Os cantores explicam essa sucessão de releituras afirmando que o rock gringo é muito popular no Nordeste, mas boa parte do público não conhece a língua inglesa. O estratagema seria uma maneira de traduzir o sentimento do hit internacional para o seu público. Por vezes a modernidade vem acompanhada da tradição: um dos hits do conjunto, Você Não Vale Nada, que estourou como o tema de Norminha (Dira Paes) na novela O Caminho das Índias, é de autoria de Dorgival Dantas, sanfoneiro que trafega tanto no repertório do forró moderno quanto no do pé de serra.

A exemplo da música sertaneja, que sob seu rótulo abriga uma diversidade de gêneros musicais distintos, o forró praticado por Calcinha Preta - e Wesley Safadão, cujo antigo grupo Garota Safada assimilou muito da banda de Paulinha Abelha - integra uma diversidade de ritmos como rock e tecno. Uma heresia para os admiradores do forró tradicional, mas compreensível para o mundo do entretenimento. Afinal, grandes plateias pedem shows à altura, seja no volume ou na diversão. O Calcinha Preta, com sua diversidade de vocalistas e um repertório eclético, trouxe para o forró tanto o público tradicional quanto o frequentador de balada. As letras, por seu turno, também se diferenciavam da postura dura do gênero masculino ou às vezes submissa das mulheres. Aqui, um homem pode pedir a volta da amada ("Paulinha, por que é que você se casou?", diz o lamento de Paulinha; ou "Por onde você hora, eu juro que pago pra saber/ Um Deus, mandei o meu amor embora", diz Como Vou Deixar Você), um homem e uma mulher discutem uma relação baseada no, digamos, poliamor ("Não vou me acostumar/ Você vai ter que escolher/ Pois do jeito que está baby/Você pode acabar sozinho", manda a letra de Dois Amores, Duas Paixões), sofrência masculina e feminina e até um certo erotismo - a moça que vai ficar "molhada" em Baby Doll. Uma mistura de romantismo e parafernália potencializada pelos amplificadores. O piseiro, novo gênero que domina as rádios, atua como uma evolução desse forró difundido por Calcinha Preta & aliados.

Bem, meu amigo continua sem saber por que a comoção em torno de Paulinha Abelha. Mas hoje o Brasil real chora a morte da vocalista como a de quem perde um parente próximo. E o novo forró se despede de uma de suas vozes mais expressivas.