Cantor negro é abordado em carro de luxo por policiais armados em SP
O cantor lírico Jean William, 36, foi abordado na manhã desta quinta-feira (28) por policiais militares armados enquanto aguardava com um amigo, no interior de um carro, o término da travessia de balsa entre as cidades de Santos e Guarujá, no litoral de São Paulo. De uma forma que ele considerou agressiva, ele foi questionado se o automóvel, um Jeep Renegade, era dele e se ele estaria levando drogas dentro do veículo.
Acostumado aos aplausos de personalidades importantes, como o papa Francisco e o príncipe Albert II, de Mônaco, o tenor disse ter passado por um cenário de constrangimento que terminou com o olhar de desconfiança dos passageiros dos outros veículos que fizeram a travessia com ele.
Tudo começou quando um amigo de Jean ligou para ele sugerindo que ambos fossem passar o dia em uma praia do Guarujá. O cantor, que mora em Santos desde agosto de 2020, gostou da ideia e, após colocarem duas cadeiras de praia no porta-malas de seu automóvel — cuja versão mais básica 2022 sai por cerca de R$ 90 mil —, partiram para a fila da balsa.
Ao entrarem na embarcação, o veículo ficou posicionado na frente, na primeira fila. Com um calor de 40 graus do lado de fora, ele e o amigo permaneceram dentro do veículo conversando, ouvindo música e respondendo a mensagens no celular.
"Quando a balsa já estava navegando, eu percebi um movimento na frente do carro. Eu estava com os olhos no celular, e os levantei. Foi quando vi um policial militar armado, apontando um revólver para mim. Eu gelei. Na hora, larguei o celular e ergui os braços", afirmou o cantor.
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Ele e o amigo teriam então sido obrigados a descer do veículo, enquanto outros dois PMs, um deles, também armado, o revistava. Nesse momento, um dos agentes teria começado a gritar com ele, exigindo seus documentos.
Minhas pernas começaram a tremer, minha boca ficou seca. Eu sabia que não tinha feito nada de errado, mas com a truculência com que te tratam, a gente não sabe o que pensar na hora. Eles gritaram várias vezes perguntando se eu tinha drogas dentro do carro, se o carro era meu, se eu tinha passagem pela polícia. Tudo isso acontecendo na frente de todos os outros passageiros da balsa. Foi humilhante.
Jean William, cantor
Ao final, um dos PMs perguntou quais eram as profissões dele e do amigo. Ele então se identificou, dizendo que era cantor lírico e o amigo, farmacêutico. Um dos policiais chegou a perguntar se o cantor não tinha feito algo suspeito, que tivesse motivado uma "denúncia", que os teria levado até ali.
Ele respondeu que não, mas que pouco antes de entrar na balsa, teve que fazer uma manobra para desviar de um caminhão, pois errara o caminho para a embarcação. "Mas foi uma manobra comum. E que denúncia seria essa que resultaria numa ação instantânea da polícia?", questiona.
Por meio de nota, a PM (Polícia Militar) esclareceu que não há registro de denúncia formal sobre os fatos relatados pela reportagem. E informou que a Corregedoria da instituição está à disposição da vítima para formalização da denúncia, junto à sede do Comando de Policiamento do Interior-6 (CPI-6), localizado na Avenida Coronel Joaquim Montenegro, 282, bairro Aparecida, em Santos.
"A PM ressalta que seus procedimentos operacionais de abordagem e fiscalização são baseadas em princípios legais e técnicos", finaliza a corporação, na nota.
Racismo estrutural
Jean afirmou ao UOL que respeita o trabalho da PM. Que, em momento algum, questionou a necessidade dos agentes de comprovar se havia alguma irregularidade com os documentos ou até mesmo revistar o veículo.
O problema é a forma com que te tratam. Essa truculência. Existe um sistema que insiste na narrativa de que um homem como eu, negro, não poderia estar dirigindo um carro de alto padrão sem que fosse roubado. E isso é racismo estrutural. Já sofri humilhações por ser negro ao escolher a carreira de cantor lírico. Já ouvi de professores que eu deveria desistir, pois não existem papéis na ópera para cantores negros. Mas eu nunca desisti. Hoje tenho 20 anos de uma carreira muito bem estruturada e sou respeitado em vários países, dentro do que faço.
O problema em incidentes como o ocorrido na balsa, ele faz questão de deixar claro, não é a PM em si, cujo trabalho ele diz admirar e considerar importante. Mas a estrutura da sociedade, desenhada para a negação da figura negra como conquistadora de espaços antes reservados somente aos brancos.
"Eles poderiam fazer a abordagem, mas de uma forma mais humana. Não sair apontando armas contra pessoas inocentes. Temos vigorando no país um tipo de padrão cultural que precisa ser questionado, um racismo estrutural. O que percebo, conversando com meus amigos, é que existe uma diferença no trato. E esse tratamento a gente não pode negar que tem a ver com a cor da pele", finalizou.
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