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Quem lacra... lucra? Diversidade reforça heróis como vingadores de minorias

Chadwick Boseman em poster de "Pantera Negra"
Chadwick Boseman em poster de "Pantera Negra"
divulgação/Marvel

De Splash, em São Paulo

09/09/2020 04h00

"A Marvel e Kevin Feige tomaram uma atitude drástica quando lançaram 'Capitã Marvel' com Brie Larson no papel principal. Os filmes e gibis não ligam mais para a qualidade da história, só querem promover o politicamente correto".

Essa foi a opinião de Matt McGloin, do site Cosmic Book News, dando a entender que super-heróis diversos (ou "lacradores") não rendem boas histórias.

Mas será mesmo?

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Diversidade e qualidade nem sempre são características opostas, e nós podemos provar.

"Capitã Marvel" divide opiniões: de fato, não é dos filmes mais elogiados do Universo Cinematográfico da Marvel (ou MCU), mas "Mulher-Maravilha", também protagonizado por uma heroína, é o maior símbolo da DC no cinema recente e supera em crítica e público outros longas do mesmo estúdio, como "Aquaman" e "Shazam!".

O principal rosto da DC nos cinemas, neste momento, é o de Gal Gadot.

Ou melhor, é o de Diana Prince.

Outro exemplo de sucesso? O filme "Pantera Negra" é um marco na história da Marvel e do movimento negro.

A morte do ator Chadwick Boseman motivou homenagens no mundo todo —inclusive da DC Comics, rival da Marvel—, o que mostra que a importância do personagem T'Challa transcende universos.

Wakanda para sempre.

Na minha cultura, a morte não é o fim. É mais um ponto de partida. Você se aproxima com as duas mãos, e Bast e Sekhmet o conduzem aos campos verdes onde você pode correr para sempre - T'Challa em "Capitão América: Guerra Civil"

De certa forma, Chadwick e seu personagem superaram a morte.

Toda ação tem uma reação

Os últimos anos viram surgir no mundo uma onda conservadora que reclama de histórias "lacradoras" —ou, como se diz em inglês, contadas por "social justice warriors" ("guerreiros da justiça social", expressão usada pejorativamente).

Ex-editor chefe da Marvel Comics e responsável pela diversidade vista nos gibis da editora de 2000 a 2017, Axel Alonso conversou com o Splash.

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Fui atacado pela esquerda e pela direita. Mas as histórias são melhores quando entretêm e mostram o mundo em sua diversidade

Críticos dizem que Axel "arruinou" a Marvel, uma afirmação curiosa se pensarmos no império criado a partir das HQs publicadas na gestão dele:

Se alguém disser que sou um 'social justice warrior' porque trouxe perspectivas diferentes para o universo de heróis, então que seja.

Sob o comando dele, a Marvel criou o "Homem-Aranha" negro Miles Morales, de "Homem-Aranha no Aranhaverso"; a versão feminina de "Thor", Jane Foster; o primeiro "Capitão América" negro (Isaiah Bradley, que surgiu nos gibis em 2003); e Kamala Khan, a "Ms. Marvel" muçulmana.

Filho de mexicano e casado com uma sul-coreana, Axel tem orgulho disso tudo:

Eu acho lindo, e refletir isso na arte é importante.

Sim, ele tem orgulho mesmo:

Quando criamos o Miles, foi importante que o Homem-Aranha que todos amamos tivesse um rosto diferente. Mas gritaram que eu tinha destruído o herói

miles homem aranha - reprodução/Sony/Marvel - reprodução/Sony/Marvel
Miles Morales em cena de "Homem-Aranha no Aranhaverso"
Imagem: reprodução/Sony/Marvel

Essas reclamações dizem mais sobre eles do que sobre nós. Quando vi Miles na tela do cinema em 'Homem-Aranha no Aranhaverso', senti que fizemos o certo.

O Oscar de melhor animação (que o filme conquistou no ano passado) que o diga.

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Carol Pimentel, editora da Marvel pela Panini no Brasil, se emocionou ao contar uma história sobre Miles.

Eu dei um curso, e um garoto negro me fez chorar. Eu levei personagens não tão comuns e ele falou que eu estava errada, que o Homem-Aranha era branco. Ele me olhou chocado. Quero que crianças de todas as cores, raças e credos saiam pulando nas paredes, jogando teias em todo mundo.

A "perifa" também se vê em Miles. Youtuber e apresentador do site Omelete, Load é negro, veio da quebrada e é tão apaixonado por heróis quanto você.

Mas ele lia gibis que "roubava" da biblioteca.

Miles foi uma revolução para Load:

O Miles não cai em vários clichês de personagens negros. Por que um personagem negro precisa ter problema com a polícia? O pai do Miles é policial e tem orgulho dele.

Ser um nerd preto na periferia é ter sonhos frustrados. Meu pai é pedreiro e minha mãe é faxineira. Meu plano era ser gari, mas precisava de segundo grau e só estudei até a oitava série. Sonhos da periferia são frustrados, mas com o Miles não é assim - Load

O uniforme de Homem-Aranha caiu bem nos meninos negros, como previu Stan Lee neste trecho do filme "Homem-Aranha no Aranhaverso".

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Falando em Stan Lee, era ele quem respaldava o trabalho de Axel Alonso:

"Eu era próximo de Stan e nós tínhamos muitas conversas sobre o que eu estava fazendo. Ele aprovava tudo. Ele aprovou Miles e amou o 'Capitão América' negro. Stan era um homem muito progressista e de mente aberta. Eu valorizo muito o apoio que recebi dele e o respeito imensamente".

stan lee - Richard Cartwright/Walt Disney Television via Getty Images - Richard Cartwright/Walt Disney Television via Getty Images
Stan Lee foi uma das maiores mentes criativas da Marvel
Imagem: Richard Cartwright/Walt Disney Television via Getty Images

Se Stan Lee estivesse aqui, ele faria histórias sobre crianças presas em gaiolas na fronteira [dos EUA com o México] e fascismo. Ele apoiava os movimentos sociais, esse é o legado dele: um mundo complexo e real. Essas pessoas que reclamam não entendem Stan Lee. - Axel Alonso

A frase de Axel lembra uma do amado vilão Magneto, de "X-Men":

A humanidade sempre teme o que não consegue entender.

O trabalho de Stan Lee como mente criativa da Marvel foi muito influenciado pelos movimentos civis que eclodiram nos EUA nos anos 1960. Assim surgiram personagens como a Viúva Negra, os negros Pantera Negra e Falcão, o cego Demolidor, o cadeirante Xavier e o questionador Magneto.

Não é por acaso que os primeiros gibis de "X-Men" nasceram em 1963: os mutantes são metáforas para minorias sociais da vida real. Ou seja, essa tendência nem é nova.

Heróis, aqui é Stan Lee. A Marvel sempre refletiu o mundo. Nunca mudaremos o jeito de contar histórias de heroísmo. Há espaço para todos, independentemente de raça, gênero, religião ou cor. Só não temos espaço para ódio e intolerância.

Wolverine mostraria o dedo aos preconceituosos.

Não, você não tem garras de adamantium e provavelmente não é capaz de atravessar paredes ou ler mentes, mas é mais fácil um de nós se identificar com um personagem de "X-Men" do que de "Vingadores", a não ser que você seja bilionário como Tony Stark ou um deus nórdico como Thor.

Explicaremos.

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Os azulados Noturno e Mística são metáforas para a aceitação das pessoas como elas são.

Sabe, fora do circo, muitas pessoas tinham medo de mim. Mas eu não as odiava, eu sentia pena: muitas nunca vão conhecer nada além do que podem ver com seus dois olhos.

Foi o que disse Noturno em "X-Men 2", o filme mais elogiado da franquia. Sempre esteve tudo ali, né?

O filme "X-Men 2", um marco dos filmes de super-heróis, também traz uma pergunta feita pelos pais a Bobby que pode ser familiar para pessoas LGBTQ+:

Você já tentou... não ser mutante?

Pois é... Bobby, o Homem de Gelo, finalmente foi "tirado do armário" pela Marvel em 2015, anos depois daquela cena.

homem de gelo - reprodução/X-Men/Marvel Comics - reprodução/X-Men/Marvel Comics
Bobby, o Homem de Gelo de "X-Men", foi tirado do armário pela Marvel em 2015
Imagem: reprodução/X-Men/Marvel Comics

E como poderíamos nos esquecer do beijo entre Hulkling e Wiccano, no gibi "Vingadores: A Cruzada das Crianças", que tanto irritou o prefeito carioca Marcelo Crivella (Republicanos)? Ele ordenou que a HQ fosse recolhida da Bienal do Rio e foi o maior bafafá.

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Página que o prefeito Marcelo Crivella afirma ser "conteúdo sexual para menores"
Imagem: Wilton Junior/Estadão Conteúdo

A tentativa de censura impulsionou as vendas e a revista esgotou na manhã seguinte... A notícia percorreu o mundo.

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Sabe como Axel Alonso reagiu?

Ficou indignado (mas sorriu ao descobrir que o gibi vendeu mais ainda depois):

É loucura. Diz muito sobre a falta de inteligência e coração de quem faz isso. Eu amo quando dizem que tento fazer crianças serem gays... Você não ensina alguém a ser gay ou hétero! Todos têm coração e alma, isso não se ensina. Não se torna gay ou hétero por causa de um gibi.

Inclusive, muita gente cresceu sem ver beijo gay nas revistinhas e nunca se perguntou por quê.

Antigamente era pro-i-bi-do incluir personagens LGBTQ+ em gibis.

A proibição vigorou nos EUA de 1954 a 1989 e foi imposta pela organização Comics Code Authority (CCA); lojas se recusavam a vender gibis sem o selo do CCA, o que fez Marvel e DC viverem "no armário" por todas estas décadas.

Esta é a história:

O primeiro grande nome a desafiar o CCA foi Stan Lee (de novo ele!), que, em 1971, publicou uma história do "Homem-Aranha" que mostrava Harry Osborn, amigo de Peter Parker, como um dependente químico.

O CCA se recusou a dar sua aprovação para esse gibi, mas Stan não se importou.

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Tudo porque a Marvel queria falar de diversidade.

E, assim, surgiu Wakanda.

O Pantera Negra foi criado em 1966, pouco antes do partido homônimo —grupo político que tinha o animal como símbolo antes de assumir o nome.

Stan Lee nunca confirmou a referência, mas a associação voltou à tona com o assassinato de George Floyd por policiais nos EUA, que gerou protestos antirracistas no mundo.

pantera negra - Yui Mok/PA Images via Getty Images - Yui Mok/PA Images via Getty Images
Em Londres, homem vestido de Pantera Negra protestou após a morte de Floyd: "Vidas Negras Importam"
Imagem: Yui Mok/PA Images via Getty Images

E se "quem lacra não lucra", como explicar a assombrosa bilheteria de US$ 1,3 bilhão (mais de R$ 7 bilhões, segundo a cotação atual) de "Pantera Negra" nos cinemas do mundo todo?

Ou as três estatuetas do Oscar vencidas pelo filme?

Negar isso tudo é ser ignorante. Load vai te explicar:

E esse parece ser um caminho sem volta:

O Disney+, serviço de streaming que detém os direitos da Marvel, já anunciou uma série focada na Ms. Marvel. A heroína é uma adolescente chamada Kamala Khan, que ganhou os corações dos fãs de gibis e virou nome frequente nas histórias dos "Vingadores" nos quadrinhos.

A novidade? Ela é muçulmana.

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O desenvolvimento de Kamala vai além de sua origem étnica e religiosidade. A personagem é complexa, oferece representatividade a fãs que, até então, eram ignorados —ela é a 1ª muçulmana com HQ solo na Marvel—, e age como uma adolescente normal, com inseguranças e ídolos (ao ponto de gaguejar diante de Carol Danvers e tietar Wolverine).

Quem nunca?

Tirando o fato de que ela é inumana e, bem, tem superpoderes, todos podemos nos identificar.

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Ms. Marvel e Wolverine
Imagem: reprodução/Marvel Comics

Quando nós fizemos um coreano [Amadeus Cho] virar o Hulk, a prima da minha mulher disse que o filho [coreano] estava chorando, aterrorizado, porque o Hulk era um menino coreano e ele tinha medo de virar o Hulk. Eu disse: 'você não vai ficar verde e virar o Hulk, mas pode ser super forte'. Foi incrível porque, pela primeira vez, ele se enxergou como alguém que poderia ser o Hulk - Axel

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Amadeus Cho é um jovem coreano que se transforma no Hulk
Imagem: divulgação/Marvel

Ele acrescentou:

Quando Thor 'virou mulher' [com Jane Foster, em 2014], achei poderoso que os dois personagens mais fortes do universo Marvel fossem mulheres [Capitã Marvel é a outra]. Minha filha tem quatro anos e isso reflete nela.

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Imagem: divulgação/Marvel

E, nos quadrinhos, sabe quando Jane Foster se torna Thor e ergue o famoso "martelo" Mjölnir?

Quando enfrenta um câncer de mama, problema comum entre mulheres reais.

Tudo bem, nem toda história focada na diversidade dá certo. America Chavez, a Miss America, é uma heroína latina e LGBTQ+ da Marvel... mas sua história é fraca e sem carisma.

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America Chavez é a "Miss America", heroína da Marvel
Imagem: divulgação/Marvel

Axel Alonso disse:

O catálogo de toda editora tem histórias ruins, com ou sem diversidade, e não são ruins por causa da diversidade. Há muita gente que odeia diversidade e camufla esse ódio dizendo que os gibis são ruins.

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E nisso até a Marvel erra.

Quando Splash perguntou se a equipe tinha diversidade suficiente, Axel admitiu:

Não. Eu transformei a equipe, mas não foi o suficiente. Mas isso não é uma crítica à Marvel apenas, e sim ao mundo.

E Axel não economiza nas críticas:

Até o Super-Homem, da DC, pode representar minorias.

O Super-Homem veio de outro planeta e é poderoso, mas quer se encaixar como Clark Kent. É igual o cara que vem da periferia, tem estereótipo de bandido e só quer ser respeitado. Eu me sinto como o Clark, imagino que imigrantes também. Todo mundo é meio Clark Kent quando chega a um lugar onde não se sente bem-vindo - Load

Mas a DC já foi criticada pela forma com que mulheres foram retratadas em suas histórias.

Um caso emblemático é o de Barbara Gordon, a Batgirl, na HQ "A Piada Mortal". A história dá a entender que a filha do comissário Gordon pode ter sido estuprada pelo Coringa, além de ter ficado paralítica.

As cenas são fortes.

piada mortal - reprodução/DC Comics - reprodução/DC Comics
Página de "Piada Mortal", HQ do Coringa
Imagem: reprodução/DC Comics
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A trama divide opiniões, e um dos críticos é Alan Moore.

Sim, o próprio autor de "A Piada Mortal" não gosta da história e já pediu para que seu nome não fosse citado em adaptações da HQ para a TV ou para o cinema.

Eu não me orgulho de ter criado essa tendência lamentável [personagens abusadores e violentos].

Se até ele está dizendo...

A história —não confirmada— que corre entre os fãs de quadrinhos, é de que Moore teria perguntado aos chefes da DC se não era errado tratar Barbara Gordon daquele jeito, humilhando a nudez feminina e sua sexualidade.

Os diretores da época teriam respondido: "Ok, pode aleijar a vadia". Isso foi em 1988.

Alan Moore nunca negou esse suposto diálogo e não fala mais sobre "A Piada Mortal".

Ao explicar algumas mudanças na animação de "A Piada Mortal", o produtor Bruce Timm disse ao Vulture:

É uma clássica situação de mulher no refrigerador: ela basicamente existia para desenvolver a história de um homem.

A DC corrigiu sua relação com Barbara; hoje, seja como Batgirl ou Oráculo, a personagem encontra bons conflitos e tem brilho próprio.

A Mulher-Maravilha, referência de força e honra, foi outra que já foi reduzida a um mero par romântico do Super-Homem em algumas ocasiões.

O arco de personalidade de Diana indica que ela jamais se contentaria com isso. E seu revival nos cinemas na pele de Gal Gadot deixa isso bem claro.

Aliás, a personagem é oficialmente bissexual:

"Se você pensar que ela cresceu com todas aquelas mulheres, faz sentido. Ela é uma mulher que ama as pessoas pelo que são. Ela pode ser bissexual. Ela ama as pessoas por seus corações".

Quem disse isso foi Gal Gadot, a atual Mulher-Maravilha, à Variety.

ww bi - reprodução/YuyuTV - reprodução/YuyuTV
A "Mulher-Maravilha" é oficialmente bissexual
Imagem: reprodução/YuyuTV
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A Mulher-Gato também é bi. A Batwoman é lésbica.

Até a Arlequina e a Hera Venenosa viraram um casal no gibi "DC Bombshells". E, sinceramente, por que não?

Mas o Batman continua hétero, cis e branco, tá?

arlequina e poison ivy - reprodução/DC Bombshells - reprodução/DC Bombshells
Poison Ivy e Arlequina se beijam em DC Bombshells
Imagem: reprodução/DC Bombshells

O Super Choque, que pode ganhar um filme live-action da DC em um futuro próximo, é um herói muito querido por quem cresceu nos anos 2000.

E ele já falava sobre representatividade. Esqueceu?

Se você amava a animação do Super Choque e hoje reclama de "lacração", o Load acha que você está errado.

Eu diria que a pessoa viu a animação de costas ou com a bunda [risos]. Não faz sentido! A animação fala sobre racismo! Ela discutia muita coisa, cara.

Sério mesmo.