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Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

James Bond: 60 anos na ativa e pronto para mais uma reinvenção

Sean Connery estreia como James Bond em "007 Contra o Satânico Dr. No" - MGM
Sean Connery estreia como James Bond em '007 Contra o Satânico Dr. No' Imagem: MGM

Colunista do UOL

06/10/2022 05h30

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"Bond. James Bond." Lá se vão seis décadas desde que Sean Connery surgiu no cinema, exalando charme e perigo, em "007 Contra o Satânico Dr. No". De forma quase casual, o astro apresentava ao mundo o espião britânico que, com uma frase, tornou-se ícone instantâneo. Do cinema, da cultura pop. De todos nós.

De lá para cá, a frase de efeito do personagem tornou-se uma das únicas constantes desde o começo de sua versão no cinema. Ao longo de 60 anos, Bond precisou adaptar-se constantemente aos novos tempos.

À medida que o mundo mudava - social, cultural e politicamente - o agente secreto de sua Majestade corrigia a rota. O desafio sempre foi, embaixo da perfumaria, permanecer em essência o agente secreto que o escritor Ian Fleming colocou no papel em 1953. Com 25 filmes na bagagem, em uma das séries mais espetaculares da história, eu apostaria que a missão foi cumprida.

A tarefa dos produtores se tornou mais fácil por contarem com uma base sólida. "O Satânico Dr. No" viu um James Bond praticamente completo chegar aos cinemas. Ao contrário de outras séries que aos poucos desenvolvem seus personagens, 007 estreou com características bem definidas que o acompanharam desde então.

Lá estavam as locações exóticas e o vilão grandioso. As frases de efeito e a companheira estonteante - a atriz Ursula Andress foi Honey Rider, a primeira bondgirl. As cenas de ação empolgantes e a trilha de Monty Norman, responsável pela assinatura musical mais famosa do cinema.

"Dr. No" foi um sucesso, muita em parte por conta do magnetismo irresistível de Sean Connery. Outros nomes haviam sido ventilados para o papel antes, de astros consolidados como Cary Grant a intérpretes como Patrick McGoohan. Claro, eles poderiam interpretar Bond. mas nenhum outro poderia se tornar Bond!

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Sean Connery desafia a morte em '007 Contra Goldfinger', o melhor de toda a série
Imagem: MGM

Connery, então com 31 anos, impressionou os produtores Albert Broccoli e Harry Saltzman com sua masculinidade despojada. Acima de tudo, ele estava disposto a assinar um contrato para cinco filmes.

Se Sean Connery finalmente foi o escolhido para encabeçar o projeto, foi o diretor Terence Young que o transformou em James Bond. No momento em que o ator se comprometeu, Young tratou de lapidá-lo para o papel.

Seu visual passou de casual a sofisticado. Connery também foi apresentado à "alta roda" de Londres, aprendendo a se vestir bem, a se portar em restaurantes finos, a projetar uma imagem elegante e irresistível.

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George Lazenby foi o Bond de um filme só em 'A Serviço Secreto de Sua Majestade'
Imagem: MGM

Nos anos seguintes, os filmes da série tornaram-se parte do tecido cultural dos anos 1960, como os Beatles e o festival de Woodstock. Connery alcançou fama global em uma sequência de clássicos do cinema moderno, cravando uma nova aventura de James Bond por ano.

Depois de "Dr. No" vieram "Moscou Contra 007", "007 Contra Goldfinger" (de longe o meu favorito), "007 Contra a Chantagem Atômica" e "Com 007 Só Se Vive Duas Vezes". Contrato fechado, o ator decidiu abandonar o papel em busca de uma renovação criativa - e para fugir de todo o barulho.

Os produtores se viram em uma sinuca, e a série James Bond experimentou, em 1969, sua primeira reinvenção. Foi quando o modelo australiano George Lazenby assumiu o papel de 007. O filme, "A Serviço Secreto de Sua Majestade", trouxe um Bond mais sensível, menos ácido, que chega a casar no final! Claro, não deu certo. Era necessário um controle de danos.

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Roger Moore entrou em cena com mais humor em 'Com 007 Viva e Deixe Morrer'
Imagem: MGM

Sean Connery voltou em "Os Diamantes São Eternos" em 1971 seduzido por um salário astronômico. A Guerra Fria aos poucos deixava de ser um pano de fundo convincente, e a revolução cultural da década anterior, com o público jovem erguendo-se contra o "sistema", se fazia ouvir. 007, um espião a serviço da Coroa, não se encaixava com os novos tempos.

Foi quando a série experimentou uma segunda cirurgia estética e conceitual. Ao assumir o papel de James Bond, Roger Moore adicionou um senso de humor peculiar e autodepreciativo. Era como se a série estivesse rindo de seus próprios excessos. "Com 007 Viva e Deixe Morrer", de 1973, é uma aventura de absurdos, culminando com um vilão (Yaphet Kotto) explodindo como um balão. Literalmente.

A essa altura, os produtores experimentavam uma disputa de poder interna, e o clima bélico refletia nos filmes. "007 Contra o Homem Com a Pistola de Ouro", embora trouxesse todos os ingredientes já esperados nos filmes de Bond, parecia preguiçoso, um filme que existia para cumprir tabela. Parecia o presságio para o fim de uma era.

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'Na Mira dos Assassinos' marcou a despedida de Roger Moore
Imagem: MGM

Uma reorganização interna, marcada pela saída do produtor Harry Saltzman, oxigenou os músculos criativos de Bond. "007 O Espião Que Me Amava" cravou a fórmula perfeita para a série. Um pouco de humor, uma pitada de romance, uma escala maior, com sequências de ação cada vez mais vertiginosas e a sombra de uma ameaça em escala global.

Além de consolidar a estrela de Moore, o filme parecia mais alinhado com o cinemão da época, uma explosão pop que tomaria o planeta no mesmo ano de seu lançamento, 1977, com a chegada de "Guerra nas Estrelas". Era uma nova forma de fazer e consumir cinema. James Bond agora dançaria conforme a música.

Não foi ao acaso que o espião foi parar no espaço no filme seguinte, "007 Contra o Foguete da Morte", e logo depois protagonizou uma aventura com os pés no chão, "Somente Para Seus Olhos". Claramente inspirado em "Os Caçadores da Arca Perdida", "007 Contra Octopussy" veio em seguida com Moore usando ao máximo sua veia cômica.

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Timothy Dalton teve a chance de deixar sua marca somente em dois filmes da série
Imagem: MGM

A estratégia de manter as características de Bond, mas arriscar tramas com tons diferentes, manteve o interesse na série ao longo dos anos. Roger Moore, por sua vez, já não exibia mais a mesma vitalidade para abraçar o personagem. Quando "007 Na Mira dos Assassinos" estreou em 1985, o astro, aos 58 anos, decidiu pendurar as chuteiras.

Foi a oportunidade para 007 mais uma vez alinhar-se com o cinema pop da época. A fantasia havia aberto espaço para astros que surgiam como exército de um homem só, como Sylvester Stallone e Arnold Schwarzenegger. Na década da AIDS, a profusão de bondgirls também parecia transmitir uma mensagem irresponsável.

"007 Marcado Para a Morte" colocou Timothy Dalton como o herói. James Bond desta vez voltava às raízes do texto de Ian Fleming como um espião brutal e implacável, com senso de humor represado e menos dependente de equipamentos extravagantes. Bondgirls? Melhor deixar no singular.

O público do final dos anos 1980, que equilibrava astros musculosos com espetáculos de fantasia possibilitados pelas novas tecnologias, recebeu o novo Bond com frieza. O filme seguinte com Dalton, "007 Permissão Para Matar", de 1989, apostou ainda mais na brutalidade em uma história de vingança. Parecia menos Bond e mais um episódio de "Miami Vice", enquanto os cinemas lotavam com "Batman" e "Indiana Jones e a Última Cruzada". Não deu certo.

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Pierce Brosnan estreia como Bond em grande estilo na aventura '007 Contra Goldeneye'
Imagem: MGM

O espião a serviço de sua Majestade precisava, por fim, de um respiro. O mundo tinha de sentir sua falta, o vácuo de sua ausência nos cinemas era essencial para construir um retorno. A reinvenção veio em 1995 com "007 Contra Goldeneye", em que Pierce Brosnan assumiu o leme em total sintonia com o mercado.

A essa altura, Albert Broccoli havia passado o comando da série para sua filha, Bárbara, que produziu o novo filme com seu meio-irmão, Michael G. Wilson. "Goldeneye" trazia efeitos especiais de ponta, reposicionava a Rússia entre os antagonistas, reconhecendo que o mundo não vivia um conflito velado. Um mundo em que James Bond, nas palavras de sua superiora, M (Judi Dench), não passava de uma "relíquia da Guerra Fria".

O público respondeu com sede. Pierce Brosnan, charmoso e perigoso em doses iguais, mostrou-se o intérprete perfeito para o James Bond caminhando para a virada do milênio. A tentação das ferramentas sofisticadas para o cinema, entretanto, mostrou-se danosa para a série.

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Bond surfou um tsunami em 'Um Novo Dia Para Morrer' e a gente não entendeu nada
Imagem: MGM

Se "O Amanhã Nunca Morre" e "O Mundo Não É o Bastante" se mostraram aventuras decentes, ainda que pouco memoráveis, a fórmula desandou em "007 Um Novo Dia Para Morrer". Planejado para celebrar os 40 anos da série, o filme é uma ode ao exagero, com seu palácio de gelo e seu carro invisível. Quando James Bond surfa um tsunami, a conexão com a realidade se perdeu. O público foi junto.

Foi o momento de fechar a lojinha e repensar mais uma vez o futuro. Como continuar as aventuras de James Bond no novo milênio de forma relevante, desafiadora e surpreendente? Como reacender o interesse em uma marca que já atravessava décadas e encontrava um mundo radicalmente diferente do que era em sua origem?

A resposta veio com a escalação de Daniel Craig para o papel de Bond. "Cassino Royale", primeiro livro de Ian Fleming com o personagem, fora adaptado como farsa, e fora da série principal, em 1967 com David Niven no papel principal. Craig, um ator intenso e carismático, trazia a energia que 007 precisava para se reerguer.

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Daniel Craig trouxe intensidade e humanidade a James Bond no excelente 'Cassino Royale'
Imagem: MGM

A aposta tornou-se uma certeza quando "Cassino Royale" estreou em 2006 com a missão de desconstruir Bond. No filme ele não surge como um espião calejado, e sim como um agente que acabou de receber sua licença para matar. Um sujeito impetuoso que confia tanto em suas habilidades quanto em seus instintos. Um 007 que não teve que ser insubordinado para fazer a coisa certa.

Nas mãos de Daniel Craig, a série passou não mais a seguir tendências, e sim a ditá-las. O sucesso foi estrondoso, recolocando Bond no mapa com estilo. Se a aventura seguinte, "Quantum of Solace" foi prejudicada pela greve de roteiristas e não se provou uma sequência digna, tudo mudou radicalmente no terceiro filme de Craig como Bond.

"Operação Skyfall", lançado no cinquentenário da série, trouxe pela primeira vez um diretor consagrado no comando. Sam Mendes, oscarizado por "Beleza Americana", construiu uma aventura sobre enfrentar o passado e respeitar seu legado, sobre revelações e despedidas. É um filme emocionante, recheados de momentos de puro êxtase (a plateia gritou com a volta do clássico Aston Martin) e plasticamente arrebatador.

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'Operação Skyfall' é o maior sucesso de toda a série e um triunfo para Craig
Imagem: MGM

A função da desconstrução é posteriormente colocar os pedaços no lugar. Sam Mendes voltou ao comando em "007 Contra Spectre" justamente com essa missão. A grandiloquência da série, deixada de lado em três filmes com Craig, aos poucos foi recuperada. "Spectre" trouxe de volta um vilão clássico, Blofeld (Christoph Waltz), com uma base secreta em uma localização exótica e um clímax que fechava a volta às raízes.

Daniel Craig, por sua vez, sentia que seu tempo como Bond chegara ao fim. Envolvido com o personagem por mais tempo que todos os seus antecessores, ele defendeu as cores de James Bond por quinze anos. Quando chegou "007 Sem Tempo Para Morrer", lançado em 2021, o ator ganhou o que nenhum outro intérprete de Bond conseguiu: um ponto final.

"Sem Tempo Para Morrer" fechou um ciclo perfeito para James Bond e para Daniel Craig. Embora o filme não exista sem defeitos - o pior deles é a falta de carisma do vilão interpretado por Rami Malek -, ele traz em seu clímax a reviravolta perfeita para que 007 possa experimentar sua próxima reinvenção sem precisar olhar para o passado. Uma ficha limpa para que a aventura possa recomeçar.

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Daniel Craig fechou as cortinas para sua versão de 007 com 'Sem Tempo Para Morrer'
Imagem: MGM

Como isso vai acontecer é o mistério a ser esmiuçado pelos próximos anos. Até o anúncio do novo intérprete de James Bond, que eu espero ser um ator alinhado com o Reino Unido do século 21, efervescente em sua mistura de raças, credos e heranças culturais, o nome do jogo será especulação. Minha aposta é que o próximo 007 não será nenhum dos nomes jogados hoje na roda.

Não será e nem precisa ser. James Bond será mais uma vez o reflexo não só de seu tempo, mas também da indústria do cinema na qual ele está inserido. Com uma boa história (já pensou uma trama de época, mais uma vez no coração da Guerra Fria?) e um bom capitão para o time, é só correr para o abraço. Afinal, o mundo já sabe tudo que precisa: conhecemos o número, conhecemos o nome. Bond. James Bond.