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Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Nove Desconhecidos':Nicole Kidman liga o automático em série sobre nada

Nicole Kidman é sua anfitriã em "Nove Desconhecidos" - Amazon Prime
Nicole Kidman é sua anfitriã em 'Nove Desconhecidos' Imagem: Amazon Prime

Colunista do UOL

25/08/2021 01h29

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Em "Nove Desconhecidos", Nicole Kidman é a anfitriã de um spa isolado que recebe um grupo de estranhos para uma temporada de terapia. Meio carcereira, meio guru new age, a atriz surge propositalmente etérea e, aos poucos, revela as camadas da psique danificada de seus hóspedes, ao mesmo tempo em que revela os traumas que a colocaram lá em primeiro lugar.

A premissa intrigante e o elenco superlativo, que também conta com Michael Shannon, Melissa McCartjy, Luke Evans e Regina Hall, aumentam a decepção com "Nove Desconhecidos". Entre muito falatório e reviravoltas que não alavancam a trama, a série basicamente versa sobre nada. É um episódio gigante de 'Seinfeld' sem as risadas e o texto ácido.

O terceiro trabalho de Nicole com o über produtor David E. Kelley não esconde os sinais de cansaço. Depois do sucesso de "Big Little Lies" e "The Undoing", que consolidaram a estrela como força motriz em formatos episódicos, a parceria entrou no automático. "Nove Desconhecidos" é a prova que não basta um verniz atraente para cravar entusiasmo na ausência de uma boa história.

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Marsha (Nicole Kidman) comanda uma sessão de terapia incomum
Imagem: Amazon Prime

É doloroso, por exemplo, ver o esforço de atores como Bobby Cannavale, aqui um ex-jogador de futebol que entrou em desgraça após uma contusão séria, para injetar um mínimo de profundidade a personagens tão rasos. São caricaturas, e não pessoas de verdade, mesmo com a boa vontade de seus intérpretes.

A cada novo episódio, "Nove Desconhecidos" remove parte da couraça erguida por Marsha (a própria Nicole) e mostra que os estranhos por ela reunidos não seriam tão estranhos assim. O texto, porém, recusa-se a avançar na personalidade de cada um.

Quando um deles é revelado não ser um paciente, e sim um repórter em busca de uma boa história, as reações são nulas. Marsha teve um caso com o ex-marido de outra? De novo, zero consequências. A própria anfitriã recebe ameaças de morte constantes, e isso também é conduzido como se tivesse zero importância. É irritante. Nicole sabe disso, então ela adota um sotaque, capricha em olhares lânguidos e faz o mínimo esforço.

Ainda assim, é um triunfo profissional para a atriz, que reconfigurou sua carreira com sucesso no ambiente rico das séries para ao streaming. Foi uma jogada inteligente que anteviu a mudança de eixo dentro da engrenagem criativa da indústria. Para Nicole, o novo rumo foi um respiro bem vindo para oxigenar uma carreira que andava inerte.

Não entenda mal. Nicole Kidman ainda é uma das grandes atrizes de sua geração. Mas a maioria esmagadora de suas escolhas não condiz com seu imenso talento. Ela começou a mostrar a que veio na segunda metade dos anos 1990, quando mostrou que era uma atriz absurda em "Um Sonho Sem Limites", de Gus Van Sant, ao mesmo tempo em que navegava na estrutura dos blockbusters hollywoodianos com "Batman Eternamente".

Esse equilíbrio parecia conduzir sua carreira, que engrenou nova marcha depois de trabalhar, ao lado do então marido Tom Cruise, em "De Olhos Bem Fechados", trabalho derradeiro do mestre Stanley Kubrick. Consolidada como intérprete, a coroa veio na virada do século, em que ela encabeçou os sucessos "Moulin Rouge!" (ainda seu melhor filme) e "Os Outros". O Oscar veio em 2002 com "As Horas". Seria também seu auge.

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Nicole em 'Moulin Rouge!', ainda seu melhor filme
Imagem: Fox

Depois de trabalhar com o polêmico Lars von Trier em "Dogville" (um filme de 40 minutos brilhantes emoldurados por muita gordura), Nicole custou a acertar de novo. Fez filmes independentes que não saiam do lugar ("Revelações", "Reencarnação"), e errou feio em uma coleção de candidatos a blockbuster furados ("Mulheres Perfeitas", "A Feiticeira", "A Intérprete", "Invasores").

A tentativa de emplacar o épico romântico "Austrália", ao lado de Hugh Jackman e com seu diretor de "Moulin Rouge!", Baz Luhrman, resultou em um filme involuntariamente cômico. Quanto menos falarmos de "Reféns", com Nicolas Cage, melhor. Sua estrela brilhou mesmo em filmes menores como "Margot e o Casamento", "Reencontrando a Felicidade" e "Lion - Uma Jornada Para Casa". E teve um grande momento nas últimas duas décadas com o inquietante "O Escândalo".

Quando "Big Little Lies" chegou à HBO em 2017, Nicole Kidman pareceu encontrar o nicho perfeito. O formato de uma minissérie parecia perfeito para ela desenvolver personagens que tinham em sua personalidade marcante e sua beleza deslumbrante as ferramentas narrativas perfeitas para nos envolver em mistérios. "The Undoing", mesmo com recepção dividida, mostrou que a tela pequena era perfeita para emoldurar seus próximos trabalhos.

SEMPRE SOB OS HOLOFOTES

O escorregão de "Nove Desconhecidos" não atrapalhou o novo fôlego da atriz, que segue equilibrando as minisséries em que pode demonstrar seu talento dramático (ela está filmando a antologia "Roar" e se preparando para o drama "Expats") e projetos escolhidos a dedo para o cinema.

O primeiro é "The Northman", aventura épica de Robert Eggers ("A Bruxa", "O Farol") em que ela divide a cena com Alexander Skarsgård, Willem Dafoe, Ethan Hawke e Anya Taylor-Joy. O segundo é "Being the Ricardos", em que ela e Javier Barden trabalham sob o comando de Aaron Sorkin em um recorte na vida do ícone da cultura pop Lucile Ball.

Nenhum projeto, diga-se, marca "a volta de Nicole Kidman". Em quase uma centena de trabalhos em pouco menos de quatro décadas de carreira, ela mostrou que, de uma forma ou de outra, nunca esteve de fato ausente. Sorte a nossa. Ainda é possível acreditar em Nicole Kidman.